Google+ Estórias Do Mundo: abril 2012

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Batman, Seu Viadinho!

, em Natal - RN, Brasil
Grant Morrison, autor inglês de quadrinhos, começou, aos 17 anos, na década de 70 na DC Comics, a editora de Super-Homem, Batman e a Mulher-Maravilha, escrevendo a 2000 AD e o Homem-Animal. Foi, no entanto, em 1989 é que ele atingiu o sucesso ao escrever, com já quase trinta anos, o conto Asilo Arkham com o Batman e Coringa como personagens principais, com abordagens mais sombrias destes. Na década de 1990, ele é um dos autores que ajuda a fundar o selo Vertigo, um selo voltado a um público adulto, o que se destaca Como Matar Seu Namorado que fez estrondoso sucesso. É neste selo que ele conheceu Frank Quitely, desenhista com quem passou a trabalhar, com quem nos anos 2000 assumiu os X-Men, o que alterou extremamente a situação dos personagens da editora Marvel inclusive matando novamente a Fênix. Definitivamente, um grande escritor e, segundo o site Omelete, poucos são tão bons em fazer declarações polêmicas.
Neste último dia 26, o twitter ficou ouriçado com a entrevista que Morrison deu a Playboy americana deste mês afirmando que Batman era gay. A resposta do quadrinista foi a seguinte (a tradução é do Omelete): 

"A gayzice faz parte do Batman. Não estou falando em gay num sentido pejorativo, mas Batman é muito, muito gay. Não tem como negar. É óbvio que enquanto personagem fictício ele é heterossexual, mas a base do conceito é absolutamente gay. Acho que é por isso que todo mundo gosta. Todas as mulheres querem ele, e saem usando essas roupas provocantes, pulando de telhado em telhado para chegar nele. E ele não está nem aí - quer mais é sair por aí com o velho e o guri."

Em resumo, eu poderia considerar Morrison homofóbico (e machista). Mas ai muita gente ia afirmar que ele nem está agredindo os gays dizendo isso, como ele seria homofóbico? A questão da homofobia (e do machismo) tem relação com a posição de o que significa ser homem. Ser homofóbico muitas vezes passa por uma pessoa considerar que só existe um modelo certo para ser homem e qualquer outra forma que fuja deste modelo pré-concebido é renegado. Homem precisa ser forte, não pode ser estudioso, não pode ter talento artístico, não poder demonstrar sentimentos, tem que brincar de bola e carrinho. E, para Morrison, por exemplo, ele deixa claro neste trecho, ser homem significa pegar geral. São várias mulheres usando roupas provocantes, pulando telhados, para chegar em Batman, e mesmo assim este homem não as quer, não as deseja, por isso ele só pode ser gay. A relação feita ai, neste trecho de algumas palavras, é de que Homem de verdade, com H maiúsculo mesmo, é aquele que não dispensa nenhuma rabo-de-saia. É o mesmo que vai exigir que meninos e homens não sejam fiéis a suas namoradas e esposas, porque homem de verdade não pode negar fogo. Morrison, este genial escritor (eu considero de verdade), infelizmente, também não tem culpa do que fala. Pai, perdoa, ele não sabe o que diz. Afinal ele só está repetindo um conceito que, em nossa sociedade ocidental, é extremamente integrado. 
Por que me dei ao trabalho de apontar que Morrison está sendo homofóbico? Porque é este combate que evita que tanto homossexuais sejam atingidos, como no caso de Morrison agora, em que os heterossexuais estão sendo. A homofobia também atinge homens heterossexuais, não necessariamente quando eles são confundidos com gays, mas quando, como no caso de Morrison, eles são colocados contra a parede para representarem um papel de macho sob pena de, ao não participarem e reforçarem o modelo de homem, serem excluídos e marginalizados dentro do sistema e chamados de viadinhos. No mundo adulto, este problema pode ser resolvido com a elegância de Hugh Jackman, que afirmou que não negaria que é gay porque para ele não tem nada de mal em ser gay (lembrando que Jackman era um ator de teatro musical antes de se tornar o Wolverine no cinema, não é a toa o fato de cogitarem sua homossexualidade), mas se pensarmos no mundo infatil ou juvenil, seria fácil imaginar agora Morrison gritando para o Batman, na escola, viadinho, viadinho, viadinho!

terça-feira, 24 de abril de 2012

Índia: A Menina Criada Como Menino




Outro personagem importante do poema épico, Mahabharata, é Shikhandi. Ela nasceu mulher, Shikhandini, mas foi criada como um menino, pois seu pai, o rei Drupada, o rei de Panchala, pedira a deus Mahadeva para dar-lhe um filho, ao qual o deus respondeu: ".. Terás uma criança que vai ser uma fêmea e, não macho. Desiste, ó rei, não vai ser diferente". Ela fora em uma vida passada uma mulher chamada Amba, princesa do reino Kashi. Amba fora tomada pelo rei Bhishma quando ele tomou o reino do seu pai e foi disponibilizada para casar-se com o irmão mais novo dele, no entanto, ela argumentou que estava apaixonada pelo príncipe Salya e que, por isso, não podia casar-se com outro. Salya havia lutado em defesa de Amba e o reino do pai dela, porém fora derrotado. Contudo Bhishma viu força na argumentação da princesa. Ele disse: "Você deveria ter deixado isso claro quando eu te sequestrei! No entanto, isso não importa. Vou tomar providências para que você seja escoltada para o reino de Salya. Vou, inclusive, dar-te um dote como eu faria a uma irmã minha. Não tenha medo, você será capaz de se casar com seu amado". 
Amba então foi levada ao reino de Salya, contudo, ao encontrar o príncipe este recusou-se casar-se com ela, porque como havia sido derrotado por Bhishma, não se considerava digno da esposa, e achava que o rei tinha direitos sobre a princesa. Ele disse: "Ó, princesa, Bhishma, o ilustre filho de Shantanu, ganhou de mim em combate justo. Ele me derrotou na presença dos meus colegas. Após esta vergonha, não posso me casar com você. Volta para Bhishma e pede-lhe uma solução para este impasse". Ela acabou sendo levada de volta ao palácio de Bhishma, com o coração partido. Amba ao encontrar o rei, o acusou e disse-lhe que para evitar o mau carma ele deveria reparar-lhe o mal que havia lhe feito casando-se com ela. Bhishma, no entanto, recusou-se. Ela então, desesperada, acabou com a própria vida, implorando aos deuses por vingança. 
Ela então renasceu como Shikhandi. Criada como menino, treinado nas artes da guerra,. Com quinze anos, na época de casar-se, a sua noiva "logo veio a saber que [Sikhandi] era uma mulher como ela, recusando-lhe". Fugindo do pai, enfurecida por causa da sua noiva, Sikhandi se exilou na floresta, onde encontrou um Yaksha (espírito da natureza) masculino, Gandharva, e eles concordam em trocar de corpos. Agora, em um corpo masculino, Sikhandi prova para o sogro que ele é verdadeiramente masculino, quando este enviou "uma série de jovens de grande beleza" para testá-lo. Elas então informam que ele é "uma pessoa poderosa do sexo masculino", e Sikhandi torna-se um guerreiro habilidoso e famoso, desempenham um papel crucial na guerra que seu pai move contra o reino de Bhishma. Quando ele trocou de corpo, Gandharva costumava usar uma guirlanda em torno do pescoço, e havia sido profetizado que Bhishma seria assassinado por alguém que usasse uma guirlanda de flores no pescoço. Durante a guerra, Shikandi e Bhishma se reencontraram e durante uma batalha épica, o rei foi morto, porém, antes de morrer, reconhecer nos olhos de Shikhandi que ele era a reencarnação de Amba.
A intenção do conto de Shikhandi é falar sobre o conceito de reencarnação, no entanto, ele deixa escapar que Shikhandini, aquela que ela ainda é mulher, tenta casar-se com a princesa que a recusa. Ou seja, ela sente atração pela noiva. 


sexta-feira, 20 de abril de 2012

Pilotagem

, em Natal - RN, Brasil
Pego o celular, enquanto caminho de volta para casa e procuro na agenda o número do Cara Comum. Ele atende logo, com apenas poucos toques.
- Oi, meu lindo!
- Oi, Cara Comum. Tudo bom? Pode falar?
- Claro, posso sim...
- Liguei para contar que um milagre aconteceu hoje a tarde. 
- Eita, que houve?
- Ah, eu contei que estou fazendo aula de direção né? E ontem começou as aulas de moto. Ontem foi o inferno. O inferno! Eu mal conseguia ligar o diabo da moto, mas hoje... o milagre aconteceu. Ontem eu estava péssimo, hoje eu consegui além de ligar a moto, até andar com ela. Estou muito chocado com a evolução de um dia para o outro.
Ele primeiro ri, enquanto conto, mas logo comenta.
- Ora, amigo, sabemos que você é bom em tudo que faz.
- Sou mesmo. 
E rimos juntos.
- Ah, tem mais. Falo.
- Que houve?
- Então eu faço aula de moto numa pista própria da auto-escola. Do lado da pista estão fazendo uma obra da prefeitura, não sei bem do que se trata. Eu estava lá então dando minhas voltas quando me aparece um peão, ou engenheiro, não sei, lindo de morrer, que ficou lá sentando me observando fazer a aula.
- Como assim você não sabe se ele era peão ou engenheiro?
- Não sei. Ele estava bem vestido demais para peão, e sujo demais para engenheiro. - rimos os dois, e eu continuo explicando - Bem vestido no sentido de que ele não estava de uniforme, como os outros peões da obra, ele usava uma camisa social.
- Ah, então ele era engenheiro sim.
- Mas ele tava sujo de terra. 
Eu paro um pouco, mas o Cara Comum fica em silêncio, eu acabo continuando:
- Ele estava lá sendo lindo e destruindo todos os meus preconceitos não é?
Após um breve riso, ele então responde:
- Vai ver ele era mestre de obras.
Eu caio na gargalhada, mas acabo por responder:
- Não, jovem demais p'ra mestre de obras. Ou será que isso é preconceito meu?
E rimos juntos.
- Mas ele ficou só te olhando?
- Rolou um flerte. Eu parei para falar com a instrutora. É uma mulher que me dá aulas de pilotagem. Quando eu parei a moto próximo a calçada ele me cumprimentou com a cabeça, ai eu tirei o capacete e ele sorriu. Aquele sorriso de canto de boca e me cumprimentou novamente, me olhando nos olhos...
- E você?
- Cumprimentei em resposta, claro. Sou educado. Mas foi só isso...
O Cara Comum então fica em silêncio por alguns segundos, quando conclui:
- Pois eu acho que você deveria passar agora lá pela obra, e buzinar, e gritar: Engenheiro gostoso! Só isso. Agora!
E eu ri.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Quando Teu Destino Te Alcança...

, em Natal - RN, Brasil
Não é inveja, juro que não é. Segundo o dicionário, inveja é desejar aquilo que o outro tem, e odiá-lo por ele possuir aquilo que você deseja. Eu não odeio meu irmão. Agora você deve estar se perguntando do que eu estou falando, não é? Meu irmão, o caçula, se mudou hoje de casa. Saiu porque ele foi aprovado em um concurso e vai ser professor em uma escola técnica federal. Good for him! E agora ele está montando a casa dele, levando coisas para sua nova casa, na cidade que ele vai começar em um novo emprego, federal, que vai pagar bem, e eu não sinto inveja. Não é isso que eu sinto. Mas me sinto mal, admito, infelizmente me sinto. Estou vendo ele realizando meu sonho, enquanto eu voltei para a casa dos meus pais, vivo, agora, completamente dependente deles, o extremo oposto. 
Lembro de uma conversa que eu tive com um amigo, anos atrás, que às vezes eu pensava que um dia me restaria estar na casa dos meus pais, para cuidar deles na velhice, enquanto meus irmãos sairiam pelo mundo cuidando de suas próprias vidas. Que a mim não estava reservada uma vida própria, que eu só poderia viver a vida dos outros. Lembrei também da minha adolescência, de meu autoimposto ostracismo quando, com vergonha de ser gay, eu evitava sair de casa, e do portão de casa eu via os meninos da minha idade com seus amigos, suas namoradas e suas festas. Agora vejo isso acontecendo de novo. Não tenho saído, por falta de amigos e por falta de dinheiro. Não posso pedir aos meus pais, aos 30 anos, dinheiro para balada, não é certo.
A sensação, no fundo, é de quem nadou, nadou... e não é que eu morri na praia... Não! Eu nadei, nadei, nadei, e quando cansei, eu percebi que não havia saído do lugar. Voltei a casa em que eu nasci, para debaixo da asa dos meus pais, que felizmente ainda existem (imagine se eu tivesse saído do armário para eles! o que teria acontecido comigo agora após esse fracasso monumental?), para cumprir minha tarefa cármica, essa deve ser a explicação: abrir mão da minha vida, e como Deus é bondoso eu nunca tive uma para não sofrer quando a perdesse. 

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O Vizinho

, em Natal - RN, Brasil
Ele está parado na esquina da padaria quando me aproximo. Ele sorri, abre aquele sorriso safado que tem, que ergue as maçãs do seu rosto e apertam seus olhos profundamente negros. Está falando ao telefone, mas pede com um gesto de mão para que eu espere. Ele se despede rapidamente e vira-se para mim.
- Olá rapá, boa noite! Diz animado.
- Boa noite. Respondo, mais tímido do que gostaria.
- Aqui, me passa teu telefone.
- Telefone? 
- É! Percebi que não tenho seu telefone não. 
- Ah, é que meu número é novo.
- Pois é, me passa teu número ai.
Eu passo o número. 
- Não é 2 no final, é oito. 
- Ah, e teu nome escreve assim né?
- Sim. Exato. 
- Mas e aí... - e ele aperta o pau sob a bermuda - quando a gente vai sair mesmo?
Eu sorrio, ele sorri de volta, eu decido dar corda para ver até onde ele está disposto a ir.
- Quando você quiser... 
- Ah, você que marca né, cara?
- Eu?
- É! - ai ele faz uma pausa, na qual passa a mão no abdômen perfeito, levantando um pouco a camisa neste processo, e termina, novamente, apertando o pau por cima do tecido da bermuda de sarja - Mas agora que tenho seu telefone eu te ligo no final de semana.
- Ah, ok... me ligue mesmo.
Neste momento aperto a mão dele me despedindo, ele tem um aperto de mão firme. 
- Mas assim... tu num tem 5 reais ai p'ra eu tomar uma birita ali não?
- Como?
- Uns cinco reais trocado você não tem não né?
Lembrei que eu tinha quinze reais na carteira, em notas de cinco, e respondi:
- Não, não tenho. Gastei todo o dinheiro que eu tinha com a passagem do ônibus.
- Não tem nem uns 2 reais ai não?
- Nem isso, cara. Encerro a questão.
Ele sorri então, continua bonito, apesar de eu saber que todo aquele flerte se resumia a apenas um approach para este pedido final. Despeço-me dele e volto ao meu caminho, mais um quarteirão até em casa, pensando porque a única pessoa que demonstra algum interesse por mim nesta cidade só quer ter alguém para pagar-lhe bebida.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Índia: O Príncipe Kliba

, em Natal - RN, Brasil



Brihannala (também escrito como Brhannada, Brihannada, Brihannata ou Vrihannala) aparece no épico hindu Mahabharata, foi o nome assumido por Arjuna que disfarçou-se como um membro do terceiro gênero por conta de uma maldição de Urvasi, uma apsara. Seu nome significa "cana grande" ou "ter uma cana grande". Sua transformação aconteceu porque ele e seus cinco irmãos, os Pandavas, foram exilados do seu reino de direito por doze anos, e o último ano deveria ser passado incógnito. Arjuna pensou então em disfarçar-se como uma mulher, porém graças a maldição lançada pela ninfa ele se transformou em um kliba. Esta maldição caiu sobre ele porque um dia que visitava seu pai Indra, Arjuna se recusou aos avanços amorosos de Urvasi que, irritada, o amaldiçoou a se tornar um kliba, homens que se vestem e se comportam como mulheres e tinham atração sexual por homens.

Arjuna apavorou-se com a maldição iminente, mas aconselhado por Krishna, ele descobriu que esta seria a melhor maneira de passar o ano final de seu exílio de forma incógnita. Quando o ano final chegou, os Pandavas decidiram que voltariam a sua cidade natal que agora era governada por Maharaja Virata. Yudhisthira, o mais velho dos irmãos, foi o primeiro a retornar a cidade e se apresentou ao rei, sem ser reconhecido, elogiando suas qualidades nobres e generosas e pedindo abrigo e emprego ao rei sob seu domínio.

Arjuna foi o terceiro irmão a entrar no palácio, mas antes vestiu-se de mulher e ao vestir-se ele foi transformado pelo poder de Urvasi em um kliba. Esta terceira classificação de gênero é conhecida como tritiya-prakriti e é descrito como a combinação da natureza do macho e da fêmea, sem, no entanto, ser nenhum dos dois. Arjuna então se apresentou como Brihannala, vestido com uma blusa feminina e um sari vermelho de seda. Ele-ela usava numerosas pulseiras de marfim, brincos de outro e colares feitos de coral e pérolas. Seu cabelo era longo e trançado e ele dançava a marcha das quatro águas. Ao mesmo tempo que seu corpo continuava incrivelmente forte e musculoso, sua feminilidade e beleza apareciam o tempo todo o que fez com o rei admirado afirmou que "seu traje feminino esconde sua glória masculina, mas ao mesmo tempo não. Você aparece apenas como a lua cheia quando eclipsada por Ketu", algo como, sabemos que esta lá, mas não dá para ver.
Apresentando-se como um(a) dançarina(o) profissional e musicista treinada(o) por Gandharvas, Brihannala explicou que era especialista em canto, decoração de cabelo e "todas as velas artes que uma mulher deveria saber". Após a exibição de suas habilidades diante de um juri, Brihannala foi testada(o) por mulheres bonitas para garantir que ele era realmente um kliba. Se ele fosse apenas um eunuco ou um neutro, os homens do palácio poderiam ter-lhe examinado eles mesmos os seus testículos. O rei satisfeito concordou que ela/ele vivesse entre as mulheres do palácio e as instruísse no canto e na dança. Logo Brihannala se tornou a(o) favorita(o) dentro da câmara feminina de tal modo que o rei o instruiu, por ser bem-nascida(o), a tornar se tutor(a) da bela princesa do reino, Uttara Kumara, ensinando-lhe as artes. Dizendo-lhe: "Brihannala tu pareces ser uma pessoa bem-nascida. Tu não pareces ser uma dançarina ordinária. Trate-a com o respeito devido a uma rainha e ganharás as riquezas de seus apartamentos". E quando os Kauravas atacaram o reino por suspeitar que os Pandavas serviam em nome do rei ali, ela/ele foi o responsável pela vitória da guerra. 
Os especialistas ainda se surpreendem hoje em dia com a naturalidade que este texto trata da transformação do Arjuna e sobretudo com a inexistência de críticas a situação que se coloca o príncipe, tanto por seus irmãos, mas sobretudo pelo rei. Choca nossa sociedade ocidental a ideia de que uma pessoa transgênero possa ser absorvida na corte do rei hindu de forma tão tranquila e sem demonstrar preconceitos. No poema épico, em momento algum se coloca a posição do kliba em situação inferior aos outros gêneros (homens e mulheres). E isso surpreende os leitores do Mahabharata desde que ele foi traduzido pela primeira vez em 1968, mas este problema é apenas culpa de nossa própria cultura na qual não cabe a transição entre gêneros desta forma.


sexta-feira, 6 de abril de 2012

Humor

, em Natal - RN, Brasil
Fim de tarde de outono em Natal. O céu, tingido de laranja, está salpicado de nuvens em tons de roxo e vermelho. Tudo parece uma tela de Manet por causa da luz cegante, mas eu escuto Mika no celular. Ouvir o libanês me deixa feliz. Sua voz de contratenor, neste celular que na madrugada anterior aprendeu a ler o chip de memória me permitindo colocar sua discografia completa, me faz ter vontade de dançar. E eu danço. Dançava inclusive enquanto fazia a pé o caminho de volta da auto-escola, mas que se chama agora centro de formação de condutores, onde tinha feito minha primeira aula prática de direção. Danço com a cabeça, com os ombros, com as mãos e os dedos, às vezes escapa uma ponta, mas eu sempre controlo as piruetas, tudo fruto de coreografias que monto mentalmente. Três homens inclusive debocharam e perguntaram o que eu estava dançando quando passei por eles, fingi não ouvi. Mike, meu vizinho, também me viu dançando quando eu chegava em casa, este no entanto sorriu com um ar bonachão de quem aprova. 
Eu canto também, não alto, tento alcançar pianíssimo as notas do Mika, sempre num falsete que surpreende as pessoas. Ninguém está acostumado a ver um homem como eu alcançando notas tão agudas. Na Sexta-feira da Paixão eu vou cantar na cerimônia do grupo espiritualista que tenho frequentado desde que voltei a minha cidade natal, cantarei junto ao coral e tenho recebido muitos elogios do meu novo regente, inclusive ele já me deu um solo com apenas três meses no grupo. Ele elogia a minha potência e afinação. Cantaremos com batas brancas que cobrem o corpo todo. A primeira vez que ele me pediu um falsete, as meninas que cantam como contralto se surpreenderam. 
Eu tenho gostado muito, pois como a quantidade de mulheres e tenores é muito maior neste coral do que no último que eu cantava em BH, eu posso explorar a minha área mais aguda. Sempre foi um sofrimento para mim cantar me contendo, mas obviamente aprendi bastante cantando por dois anos como barítono e explorando meu grave, ampliei minha capacidade de alcançar notas graves, porém reduzi meu alcance nas notas agudas, agora tenho treinado mais isso, e é bom. Ser tenor é uma das coisas que eu me orgulho hoje em dia. Sempre me criticaram por causa da minha voz, aqui em Natal, diziam que eu tinha voz de bichinha. Eu tinha vergonha, até descobrir que minha voz é assim porque eu sou um tenor que quase alcança as notas de um contratenor, a voz mais aguda entre homens, como Mika. Isso é um dom, e ninguém vai me roubar isso.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Moira

, em Natal - RN, Brasil
A lágrima rola. Resultado da sensação de vazio que me toma. Olho pela janela do ônibus e tento respirar fundo. Vejo uma folha de papel, amassado, alguma propaganda de uma loja de móveis. Outra lágrima cai. Desce pela bochecha e molha minha barba. Não olho para ninguém que está no ônibus, não quero que ninguém veja que estou chorando, olho para baixo, mas um soluço me escapa, e eu sinto olhares sobre mim, pode ser apenas minha imaginação, no entanto, mantenho meus olhos baixos com medo de comprovar a verdade. Outra lágrima brota. Sinto-me sozinho, derrotado, sem nenhum futuro pela frente. Penso no caminho já trilhado até aqui, o quão árduo foi e como não valeu a pena. A quarta lágrima junta-se as outras. Penso na morte. O quão bom seria se um acidente tomasse minha vida naquele instante. Como eu não faria falta, porque sou daqueles que são invisíveis e que não fazem diferença na vida de ninguém. Sinto-me covarde. Eu deveria ter coragem de terminar com tudo. E não esperar que algum deus benfazejo corte o fio da maldita moira.  Desejo a morte. Uma lágrima escorre. E eu encosto minha cabeça no vidro sujo do ônibus. Fecho os olhos e ouço o motor que acelera e pessoas que conversam. E tento me acalmar.