Google+ Estórias Do Mundo: março 2009

quinta-feira, 26 de março de 2009

PASSADO: A Corda E o Banco

Ele estava ali, naquele quarto, no escuro de uma noite de outubro. Era um domingo. Prostrado diante de uma corda de sisal, pendurada nos caibros de maderia do telhado, e um banco pequeno no chão. Chamava-se Paulo Alberto, tinha dezesseis anos, tinha um trabalho para entregar na escola quando o sol nascesse, mas nada estava pronto, só que ele não se importava mais com nada, pois já se considerava morto. Ele sabia que estava morto. Ele sabia que sua vida acabara.
Para um observador desatento, Paulo era um adolescente suburbano comum. Jogava futebol a tarde com os amigos e torcia para o Palmeiras, frequentava a escola ou pelo menos algumas aulas, gostava especialmente das de História, tinha uma namorada e não era nem mais virgem. Um adolescente bem comum, diria-se. Mas tudo o que Paulo não se sentia era comum. Não desde que descobrira os prazeres que o corpo de outro homem poderia lhe dar. Paulo não era comum e se envergonhava disso. Envergonhava-se profundamente.
Alguém comum não passaria pelo que ele estava passando desde a sexta-feira quando recebera o resultado daquele exame. Quando o médico deu-lhe com olhos gelados uma sentença de morte. Ele, aquele menino crescido, queria apenas alguém com quem conversar naquela noite. Precisava urgentemente após a notícia que destruíra sua vida. Mas ele não tinha com quem conversar. Com quem se abrir? A quem contar que agora tinha AIDS? Ele sabia que não era o único. Na sua escola mesmo haviam pessoas como ele. Alunos e professores. Não deviam ser doentes como ele, porque agora ele era doente. Mas eram como ele. Porém Paulo não sabia como conversar com eles. Antes ele tentara o que sempre soubera fazer, tentara seduzí-los, pois Paulo era bonito. No auge da juventude do seu corpo, no auge da beleza que só a juventude pode garantir, era fácil conseguir o sexo de outros homens. Bastava duas palavras e um sorriso sacana. Paulo, então, tinha esses homens para si. E, às vezes, eles ainda lhe davam presentes. Mas ali, naquela noite, em que uma dura verdade fora jogada em seu colo, não tinha com quem se abrir. Estava sozinho, no seu medo e sua dor, isolado.
Agora descobrira que estava doente. Algum dos homens com quem se deitara passara-lhe uma doença sem cura e agora ele só via uma saída. Aquela corda e aquele banco. Não podia contar a todos que tinha AIDS! Como explicar como contaminara-se? Como explicar que, às vezes, ele gostava de sentir outro homem dentro de suas carnes? Como explicar para sua namorada, que contara-lhe na sexta-feira que estava grávida, que agora ele iria morrer de uma doença de viado? E que ela podia morrer também! Paulo estava apavorado.
Sua avó bateu na porta do quarto e disse qualquer coisa que ele não entendeu. Estava na casa dela desde que recebera a notícia, se escondeu lá. Lembrou até que um de seus professores morava ali perto. Podia procurá-lo? Mas como dizer aquelas coisas que queimavam nos seus lábios quando ele tentava pronunciar, como? Como?! Ele levantou-se e socou a parede, praguejando contra si e contra o destino cruel em que ele se inscrevera. "Viados! Todos!", e ele mesmo também. Sentara no canto, chorando, e pensando que também era viado, gay, bicha e ia morrer por causa disso. E chorou mais. Foi chorando que subiu naquele banco. Foi chorando que colocou a corda no seu pescoço e pulou. E foi chorando que sua avó, tempos depois, encontrou seu corpo azul, pendurado no teto da casa. Sem ar. Morto.




Esta estória é baseada em fatos reais. Paulo realmente existiu, foi meu aluno, e realmente se matou quando descobriu que tinha AIDS, apenas eu, na escola, sabia que ele fazia sexo com homens, apesar da namorada que mantinha. Este texto é em memória dele, para que ele nunca seja esquecido.

segunda-feira, 23 de março de 2009

PRESENTE: Through the Looking Glass

Todo dia eu o vejo, todo dia ele esta lá. Dessa janela que posso ver seu mundo, mas do qual ele não pode me ver. É a única coisa que nos separa e me impede completamente de lhe tocar, de lhe falar, por ela só posso observar, esse vidro, esse fio de prata que nos divide, separa e ao mesmo tempo une, porque só por causa da luz que a atravessa que eu ainda o posso ver, nosso único contato, alguns minutos por dia, eu calado, vendo-o do outro lado. Estranhamente, ele está sempre sozinho. E me pergunto: ele é tão bonito, lindo, demonstra inteligência com todos os livros que vejo espalhados por lá. Olhando de certos ângulos, dá para ver mais do mundo dele. A cama de edredom verde, desenhos na parede, quase dá para ver seu criado-mudo, e livros e caixas jogados no chão. Acho que reconheci Dom Quixote e também Eva Luna. Um computador no quarto. Ele vê filmes, séries de tv e documentários. Não tem uma TV no quarto dele. E ele usa uma lanterna para ler no escuro às vezes. Mas eu tenho pena dele. Ele está lá sempre tão sozinho, dentro daquele mundinho só dele. Ele realmente merecia alguém. Alguém para dividir aquele mundo, para rir dos mesmos filmes e chorar das mesmas séries, para discutir os mesmos livros e se cansar das mesmas músicas. Mas, ao que parece, ninguém consegue ama-lo, somente eu que o vejo por trás deste vidro conseguiria. Só que tristemente ele está lá do outro lado do fio de prata. Eu não consigo toca-lo. E, pior, que as vezes dá para perceber o quanto ele quer um abraço. Dá para vê-lo deitado, abraçado ao travesseiro. O quanto ele não adoraria um cafuné. Eu sei, quem não gostaria? Mas ele não tem quem o faça por ele. Eu gostaria de fazê-lo, mas não posso. Não posso tocar este cara que me aparece todos os dias no espelho. Mas ele merecia mais... bem mais...

domingo, 22 de março de 2009

PASSADO: Pequenas Lembranças

Sentados na praça de alimentação do Natal Shopping, enquanto o Fê brinca com minha câmera do celular, nós dois conversamos num fim de tarde, após a faculdade.

Foxx: Eu não acho que seja um grande problema para uma criança levar uma surra.
Fê: Ah, eu acho um absurdo! Não se cria uma criança batendo nela.
Foxx: Mas, às vezes, é necessário...
Fê: Eu nunca apanhei dos meus pais, nem minhas irmãs hoje em dia apanham.
Foxx: Ah, pois eu apanhei sim!
Fê: E olha o que deu!
Foxx: ¬¬

quarta-feira, 18 de março de 2009

PRESENTE: Sir Douglas (parte 3)


Ele entrou sussurando. "Porque você está sussurando?". Ele falou que não queria acordar ninguém e eu contei que estava completamente sozinho naquele carnaval. "Todos viajaram", e ele sorriu aquele sorriso perfeito, sentado já na minha cama, com apenas luz do corredor iluminando seu rosto e o céu negro da cidade aparecendo na janela. Foi quando ele me beijou novamente, sussurrando que deveria ter aceito meu convite logo, e eu, podendo "resistir a tudo, menos às tentações", esqueci os conselhos do MSN e logo as calças dele estavam sobre a cadeira e as cuecas, minha e dele, jaziam largadas no piso de madeira, ambas, coincidentemente, brancas. "Como é que você gosta?". Gemidos. "'Tá doendo?". Beijos. Gozos. Suspiros. "Você é uma delícia!". Sorrisos. E ele se deitou do meu lado, mexendo nos meus cabelos. "Você é bem experiente para um 'hétero'?". Ele riu e me contou sua história. Três casamentos, com homens, mais ou menos dois anos com cada um deles. "Coincidência, mas todos eles eram muito ricos. Sempre tive uma ótima vida graças a meus namorados. E você, já foi casado?". Eu disse-lhe que não, sem aprofundar-me em meus fracassos. Ele então me virou na cama, abraçou minhas costas, puxando meu quadril para junto do seu corpo e dando-me seu braço para descansar minha cabeça. "Pois é assim que a gente dorme quando é casado!".
Acordei pela manhã, quando ele se virou dando-me suas costas que antes de eu abraçar, eu admirei. Uma bunda e as costas perfeitas era uma bela visão para começar o dia, "a beleza é uma forma de genialidade" latejava na minha cabeça, e era impossível eu não tirar uma casquinha. Acariciei suas costas e sua bunda com a mesma delicadeza que na noite anterior ele tinha me tratado e quando ele, entre sonhos, sussurrou baixinho, "me abraça", não pude resistir. Abracei-o e adormecemos de novo. Acordei horas depois e novamente não pude evitar, mas desta vez ele acordou e, animado, perguntou onde eu colocara as camisinhas. E, mais animado, depois que minha boca percorreu todo seu corpo, foi a vez dos lábios dele seguirem pelo meu. Mordidas. "Aproveita, sou teu, pode fazer o que quiser". E um sorriso. Eu de bruços na cama. "Sua bunda, que linda!". Gemidos. Beijos. E novo gozo.
Foi quando ele se deixou cair ao meu lado, mas logo puxou-me aninhando-me em seu peito, enquanto fazia-me cafunés. "Pena que você chegou tão tarde! Agora eu já sou comprometido!". Eu não entendia de onde vinha aquilo, mas deixei-o falar. "Se eu estivesse solteiro, bem que poderíamos tentar...", eu olhava-o interessado em como aquilo iria terminar. "Porque apesar de eu ter namorado só com homens que tinham uma boa condição social, isso não é extremamente necessário". E respirei fundo! "E eu estou com minha namorada, sabe? E ela tem aquilo que gosto: é de boa família, tem berço, educação, cultura" e, comigo, eu pensei: "E dinheiro, sir Douglas, e dinheiro". "Fosse qual fosse sua conduta para comigo, eu sempre soube que no fundo você me amava. Embora percebesse com clareza que minha posição no mundo da Arte, o interesse que minha personalidade sempre despertou, meu dinheiro, o luxo em que vivia, os mil e um detalhes que tornam a vida tão cheia de charme e tão deliciosamente improvável, como acontecia comigo, todas essas coisas eram elementos que exerciam sobre você um fascínio e o faziam ficar a meu lado; apesar de tudo isso, sempre houve alguma coisa além, uma estranha atração: você me amava mais do que a qualquer outra pessoa". Só Oscar Wilde acreditava em suas palavras, Bosie. Só Wilde e essa pobre menina.

domingo, 15 de março de 2009

PASSADO: Perdoa-me, Pai.

Perdoa-me, pai, porque pequei. Pequei contra ti, e contra mim. Eu sinceramente me arrependo. Meu Deus, eu me arrependo de todo o coração de vos ter ofendido, porque sois tão bom e amável. Arrependo-me de ter praguejado contra ti quando meus desejos não se tornaram realidade. Quando aquele amor me abandonou. Quando aquele outro não realizou os sonhos quem me fez castelar. Quando aquele outro não chegou nem a se tornar um outro. Quando minha fé em ti se abalou. Perdoa-me! Prometo, com a vossa graça, esforçar-me para ser bom. Prometo! Tornar-me-ei melhor agora. Agradecerei os meus dons, presentes que vós me concedestes, agradecerei cada vitória como se fosse única e esquecerei as derrotas, apesar de serem muitas. Sonharei muito também, meu Deus, e sob tua guarda saberei que estarei protegido para conquistar meus objetivos, na sábia hora que vós decidires. Mas, meu Jesus, misericórdia! Ó, filho do senhor, perdoa-me por ter faltado com meus pais. Meus santos pais! Não acreditado no amor tão devotado que eles rendiam a mim. Não ter acreditado que aquele amor já era revelado. Por ter desejado me afastar! Eu os amo, devotadamente, eu os amo. Honrar o pai e a mãe! Meu primeiro pecado! Senhor meu Jesus Cristo, deus e homem verdadeiro, criador e redentor meu: por serdes vós quem sois, sumamente bom e digno de ser amado sobre todas as coisas, e porque vos amo e estimo, pesa-me, Senhor, de todo o meu coração, de vos ter ofendido. Com tantos e tantos pecados. Por não ter amado a todos como tu os amaste. Perdoa-me, ó meu pai, pelo ódio que nutro por algumas pessoas até hoje. Perdoa-me por não conseguir perdoá-las. Aqueles que me acusam, me apontam o dedo e me julgam. É porque doeu tanto. E ainda dói. Sou homem, tu já o foste, e sabes que não há ser mais frágil. Proponho firmemente, ajudado com o auxílio de vossa divina graça, emendar-me e nunca mais vos tornar a ofender. Espero alcançar o perdão de minhas culpas pela vossa infinita misericórdia. Se me permitires, ó senhor!

Amém.

quinta-feira, 12 de março de 2009

PRESENTE: Sir Douglas (Parte 2)

Voltamos ao ponto de ônibus juntos. Estava tarde e o frio da madrugada já nos rondava. Sentados, sozinhos desta vez no ponto de ônibus, ele me contava sobre os projetos de designer que ele fazia. Deu-me um cartão seu, com seu e-mail. Eu passei-lhe o meu telefone, ele, temeroso, não queria passar o dele. "É que eu tenho namorada, sabe como é, né?". Eu concordei porque realmente sabia, estou acostumado com este tipo de pessoa. "Pelo e-mail podemos conversar sem perigo. Esse que eu te dei ela não tem a senha". Logo nosso ônibus chegou e estávamos sentados no banco do fundo, próximo a porta de saída, e aquele menino moreno de sorriso de anjo pressionava sua perna contra a minha, minha mão estão pousou sobre a perna dele e ele, sorrindo, consentiu. Ele então pediu-me outro beijo, tenso, dei-lhe ali mesmo, dentro do ônibus, mas convidei-o para ir a minha casa em seguida. Ele não respondeu apenas segurou minha mão como se fóssemos namorados fugitivos. Beijou-me de novo. E disse que era melhor não. E repetiu: "Eu tenho namorada". E contou-me todas as boas características que faziam dela, a namorada, uma menina tão especial, "mulher para mim tem que ser assim, eu gosto de homens sabe?", e eu pensei nas palavras de Wilde, "o amor que não ousa dizer o nome", e ele continuava a falar "Mas ela tem o que me atrai". Naquele ponto eu tomei por certo que aquilo não ía dar em nada, "as coisas deveriam ser assim, mas o mundo não entende", e quando meu ponto chegou levantei-me e, com um sorriso, disse-lhe: "Quando você quiser, me liga então, 'tá certo?". Ele sorriu e eu desci para o frio que separa a Antônio Carlos do meu apartamento.
Acendi um cigarro e caminhei até a porta do meu condomínio de nome grego e estilo eclético. Lembrava da Balada do Cárcere, "Apesar disso, escutem bem! Todos os homens matam a coisa amada; com galanteio alguns o fazem, enquanto outros com a face amargurada; os covardes o fazem com um beijo, os bravos, com a espada!", enquanto subia as escadas de ardósia e entrei na escuridão que inundava minha sala cuja tv ainda jaz no chão, a única luz vinha da janela em que meu bonsai descansa, cercado por nove horas. Fechei a porta atrás de mim e caminhei para o banheiro branco em que tomei um banho merecido, e já decidido a ir dormir sentei, por alguns instantes, no meu computador. Foi o tempo necessário. Conversava no MSN com o Sebek quando meu celular tocou. "Foxx?", confirmei, "É muito tarde para eu ter mudado de idéia?". Era ele. Eu, obviamente, disse que não. "É que acabei de me dar conta que perdi a chave do meu apartamento, não posso nem entrar em casa, posso dormir aí com você?". Eu, obviamente, disse que sim. Em quinze minutos ele chegaria. Contei ao Sebek e ele, preocupado, ordenou-me que eu não fizesse sexo. "Não no primeiro encontro", disse, "se você pretende algo a mais disso aí". Britanicamente, em quinze minutos, o porteiro me chamou. Ele estava lá embaixo.



PS: Agradeço a todos os selos que tenho recebido estes dias: o Prêmio Dardos que me foi indicado por inúmeras pessoas que se eu for tentar lembrar vou esquecer alguém; o Olha Que Blog Maneiro que também me foi oferecido por dois blogayros; O Esse Blog Vale Ouro, concedido pelo maravilhoso Mike; O Manifesto Jovens Que Pensam que me foi indicado pelo João do Olmos Não Dão Pêras (tão Shakira né?) e o Este Blog Me Faz Rir que o Gustavo, do Would U Like To Try?, me surpreendeu, concedendo-me. Agradeço muito, mas no momento não vou repassá-los. Fica para outra vez.

quarta-feira, 11 de março de 2009

PASSADO: Crônica da Vida Cotidiana II

Este Mundo Ainda Tem Jeito

Essa estória se passou em 02 de junho de 2004, na parada de ônibus que ficava em frente ao Nordestão Cidade Jardim, um grande supermercado natalense. Quem me lembrou dessa estória foi o último post do Crônica Masculina, além, é claro, de um certo blogayro preconceituoso que anda rondando meu blog. Dedico a ele.





Eu acabara de sair da casa do Din, um amigo, já era noite, a meia-noite quase anunciava as doze badaladas, e tinha ido pegar o último ônibus que se dirigia a minha casa na parada do Nordestão Cidade Jardim. Era um domingo qualquer desses de inverno em Natal, o que quer dizer que poucas estrelas havia no céu e as nuvens se juntavam para chover sobre as fogueiras de São João. Única época que é certo chover em Natal, quando a primeira fogueira é acesa. Eu esperava o 63 sentado, cabisbaixo, pensando cá com meus botões quando um viadinho chegou na parada. Para quem não sabe, junto ao CCAB Sul, que fica quase ao lado do supermercado, tem uma boate gay: o famigerado Pagode, que eu frequentava quase que todo domingo anos atrás. Com certeza ele vinha de lá. E era muito viado, na verdade, era quase uma menina. E por milagre: eu não o conhecia. Mas educadamente ele de desejou boa noite quando se aproximou.
Bem... continuando a história... ele ficou lá esperando o ônibus dele quietinho, sem incomodar ninguém. Mas, no entanto, logo depois ele chegar e se acomodar, aproximou-se um casal com duas meninas que deviam ter entre 14 e 12 anos. A mais velha então começa a ter risinhos descontrolados ao ver o menino. Ria. Apontava. Humilhava o coitado que mantinha-se calado, olhando para o horizonte, como se nada o afetasse. Foi quando eu vi o que mais me deixou chocado. A mãe da menina virou e disse:
- Amanda, você não sabe o que é respeitar os outros? Sua sorte é que nós estamos na rua, senão eu batia na sua cara agora. Mas espere chegar em casa.
A menina, a tal Amanda, olhou incrédula para a mãe, se tivesse olhado pra mim teria visto o mesmo olhar no meu rosto, porque eu também não acreditava no que tinha ouvido. Olhei para o menino, o viadinho, e ele ouvira também e sorria de canto de boca, ela, a Amanda, então virou-se para o próprio pai, pedindo ajuda, e aí tomei meu segundo susto. O pai dela virou-se e falou:
- E quem vai bater quando chegarmos sou eu!
Amanda se calou. Eu contive um riso estupefato, o viadinho brilhava orgulhoso. De muito perto, vi a menina calar-se e buscar abrigo na barra da saia da mãe, como quem pede desculpas, como quem não sabe que cometeu um erro. Sua irmã, em silêncio estava, em silêncio permaneceu.
Essa estória permanece sempre nas minhas lembranças, mas como me lembro dela mudou muito porque eu também mudei. Lembro que saí de lá desejando sinceramente que Amanda tenha levado a surra prometida, achando que era isso que toda criança que demonstrasse algum tipo de preconceito deveria receber. Castigo! Porém, eu percebia que isso era meio que impossível pelo simples fato que crianças não são por si só preconceituosas, elas aprenderam com alguém. Aprenderam que pessoas que são diferentes delas são inferiores. Primeiro os negros, mas isso ficou bem impopular; depois os judeus, mas isso virou um crime ainda mais odioso; depois as mulheres, mas isto é atirar no próprio pé; restaram os gays, principalmente os viadinhos-efeminados que são os mais visíveis entre todos. E aí eu me lembro de Geni e o Zepelin, "ela é boa de apanhar, ela é boa de cuspir". Minha pergunta naquela época era com quem Amanda teria aprendido tanto ódio, aos 14 anos, se seus pais pareceram ser tão "esclarecidos"? É. Mas espero que Amanda tenha aprendido a lição. E os filhos dela não sejam mais preconceituosos.
Hoje minha pergunta é quando os próprios gays vão deixar de cuspir para cima? Quando vamos parar de ter preconceito com um menino que só teve o azar de não conseguir dissimular tão bem quanto nós? Por que é necessário dissimular? Por que fingir? E por que escolher seus amigos e/ou namorados somente entre estes que conseguem fingir que são "um simples amigo"? Bem, eu, graças a Deus, não faço isso! Do pecado da Amanda - e de um certo blogayro - eu estou livre.


PS: Para completar, agora falta ir lá nos sitezinho e assinar a lei que pune criminalmente a homofobia, vamos lá, não custa nada, porém, não sem pensar direitinho e ver que homofobia voltada contra o próprio grupo do qual você faz parte também é muito grave! E sim, a lei poderá ser usada contra outros gays que ajam com preconceito contra os seus!

sexta-feira, 6 de março de 2009

PRESENTE: Sir Douglas (parte 1)


Que calor fazia em Belo Horizonte, naquela sexta-feira de carnaval, apesar dos 27° que marcava no termômetro. Estava abafado naquela noite. Eu olhava as árvores esperando um vento benfeitor, mas nada se movia. Eu então decidi mover-me por conta própria e, a noite, acompanhado apenas por uma carteira de cigarro Carlton, rumei em direção ao Estúdio da Carne. Sentei numa mesa na calçada, e chamei o garçom - um menino loirinho que parecia ter 15 anos, com um brinco na orelha e um belo peitoral -, enquanto pessoas conversavam ao meu redor. Numa mesa uma menina lésbica perguntava como é a sensação de ser passivo para um menino que respondia sem vergonha, enquanto segurava na mão do namorado. Na outra, um menino gordinho fumando um Malboro atrás do outro ria com sua amiga loira. Em outra um rapaz negro borboleteava com gestos grandiosos. Uma cerveja, duas, a vontade de ficar ali já se esvaía, três cervejas, e dei minha noite por encerrada. Não esperava mais nada. Sentia-me sozinho e triste porque eu era o único ali sem uma companhia para conversar. Paguei a conta e me dirigi ao ponto de ônibus, "vamos de volta para casa".
Parei atrás do ponto e comprei um Trident de um vendedor ambulante, "1 real, rapaz!", e quando vire-me em direção ao abrigo, um menino moreno, de cabelos anelados e olhos negros me observava curioso. Eu sorri tímido e ele virou-se. Virou-se e levantou, se afastando do aglomerado de pessoas que também esperava o ônibus. Percebendo seu movimento, eu me aproximei. Não estávamos tão distantes dos outros para parecer que fora planejado. Apenas duas pessoas que pararam ao mesmo tempo no mesmo lugar. E ele, aproveitando que isto é um costume comum dos mineiros, começou a puxar papo ali mesmo. Falou da demora do ônibus, falou dos mendigos, ratos e baratas das ruas da capital, perguntou se Natal era assim, falou das outras pessoas na parada, e de como detestava carnaval, até que me convidou para dar uma volta. "Tem uma praça ali, a gente pode ficar conversando enquanto o nosso ônibus não passa". É, a essa altura já sabíamos que pegaríamos o mesmo ônibus.
Caminhamos um pouco. Falávamos sobre arte, museus e galerias de arte. Ele, designer, 24 anos, ex-modelo. Falamos sobre papel, gramaturas e impressões, sobre papel japonês e restauração. Sentamos na praça, umas árvores sobre nossas cabeças, lírios amarelos que não haviam florescido ainda, mas eu sabia que eram amarelos, esperavam o sol ao nosso lado. Falamos sobre o século XVI, apropriações da antiguidade, desenhos e doutorado. Mas os habitantes das praças de Belo Horizonte, adolescentes "rebeldes", logo chegaram e encanaram conosco, e resolvemos sair, caminhar um pouco naquela noite de céu aberto. Foi aí, que passamos por uma rua em que uma árvore enorme lançava uma sombra protetora sobre o asfalto, e ele ficou em silêncio, e, olhando nos meus olhos, sorriu e puxando-me pela nuca, me beijou com suavidade, como quem beija a testa de uma criança, me enebriando com seu perfume doce.

segunda-feira, 2 de março de 2009

PASSADO: Outra Vida

O ano é 1963. Estou aqui nesta cela há quatro anos já. E hoje é meu último dia. Naquele dia receberia a injeção que paralisaria meus pulmões enquanto eu dormia. As grades que foram minhas únicas companheiras nestes anos não me dirão adeus quando eu partir hoje. Partir de vez. O pior é que realmente eu desejo esta morte, porque eu sei que sou culpado. Todas as noites, desde que fui trazido para cá eu tenho o mesmo sonho. O sangue dele ainda escorre pelas minhas roupas todo dia quando acordo. E se aqui houvesse um espelho, eu tenho certeza que ainda veria meus olhos dilatados pelo ácido que me permitiu fazer tudo aquilo. O pior, o pior de tudo, é porque eu realmente o amava.
Não consigo lembrar o dia que o conheci, não mais, mas o dia que o perdi. Este dia sim. Ficou registrado e passa todos os dias diante dos meus olhos. Lembro do festival, e ainda consigo sentir a grama entre meus dedos dos pés, quando estávamos lado a lado no Buena Vista Park, ele ria feliz, por minha causa, por causa das drogas que dividíamos juntos, e do sexo que descobrimos juntos. Ensinamo-nos que dois homens podiam se amar sim. Mas aquele ácido, o maldito ácido, tomou conta de mim, e transformou o amor que eu sentia numa ira desenfreada de ciúme. Para mim todos o queriam. Para mim ele queria todos. E porque não? Estamos nos tempos do amor livre. Eu sabia disso. Todos sabiam. Porque deveríamos exigir fidelidade. Isso é coisa do passado. Coisas dos nossos pais. Mas o ácido.
Foi no apartamento dele que tudo aconteceu, naquele prédio antigo de paredes de tijolos aparentes. Cheguei e ouvi barulhos. Ele tinha amigos na casa. Cigarro e bebidas por todos os lados. Pó e ácido lambidos e cheirados nos corpos das pessoas que espalhavam-se pelo chão. Alguém tocava Janis Joplin ao violão quando eu entrei, To Love Somebody, acredito eu. Ele estava lá no centro distribuindo o amor que os deuses deram a ele. Era o próprio Kama em sua nova encarnação. Homens e mulheres o tinham. Mas eu o queria para mim. Somente para mim. Ele não queria ser somente meu. Ele não era de ninguém. Liberdade, liberdade, ele gritava em nome de todos os deuses hindus. Ele me ofereceu o pó em sua própria mão. Depois álcool de sua própria boca. E quando tudo aquilo tomou conta do meu corpo e aquele corpo dele era possuído por inúmeros outros corpos, eu me descontrolei.
Aquele machado estava ali. Não sei como ele surgiu em minhas mãos. E num momento depois era o sangue dele que se espalhava pelo chão, pela minhas pernas e meus cabelos. Ele estava morto. E eu chorava ensandecido. Ele parecia Chinnamasta, mas não me concederia acesso a consciência universal. Fui preso ali mesmo, ajoelhado no sangue dele. Não tentei fugir. A corte aleguei culpa e pedi para ser castigado. Pedi pena máxima e eles não se envergonharam em me oferecer a pena de morte. Eu sentei naquela cela e esperei, desde então, por este dia. O dia que eu pagaria por ter matado aquele que eu amava. Os guardas chegaram na hora esperada. Levantei-me sem protestos e um deles elogiou-me o comportamento. Mas porque eu me apegaria aquela vida? Era hora de partir!




Em 2005, eu fiz uma sessão de regressão. Isso foi o que descobri sobre o meu passado.