Alexandre
nascera às margens do rio Grande dos camarões. Banhara-se
primeiramente nas águas lamacentas daquele rio cercado por mangues.
Foi com a água de lá que o sangue de sua mãe foi lavado de seu
rosto. Aquela negra, que nascera livre e com o nome de Bárbara, em
homenagem a santa, trabalhou até o último instante que o menino
esperou para nascer. Vendia quitutes pelas ruas da cidade desde moça.
Vendia raivas, sequilhos e grude gritando a plenos pulmões. Bárbara
nascera xaria, morava acima da ponte que permitia passagem no pântano
ribeirense, mas descia com seu tabuleiro a ladeira todos os dias para
vender seus quitutes para os canguleiros. Alexandre nasceu em um dia
desses de trabalho. Bárbara desceu a ladeira e atravessara a ponte
carregando seu tabuleiro na cabeça. Sentiu a primeira pontada da dor
no parto quando pisou na ponte de madeira, mas continuou seu
trabalho, era quase meio dia quando as dores não deixaram mais ela
andar. Bárbara conseguiu encontrar apenas uma árvore que margeava o
rio para encostar-se. Colocou o tabuleiro no chão e sem emitir um
pio colocou Alexandre no mundo. Ela lavou o menino ali no rio mesmo,
que não reclamou da água fria, e subiu mancando com o tabuleiro na
cabeça e o bebê nos braços até a igreja de Nossa Senhora do
Rosário que vigiava tudo lá de cima da colina.
Ela
entrou aqui com o menino pingando ainda. Assustei-me com os cabelos
desgrenhados e o sangue que ainda escorria pelas pernas da negra. Ela
me olhou com olhos cansados e falou:
- Batizei
ele de Alexandre, lá no rio.
Eu
peguei o menino gorducho que ela trazia. Devo ter sido o primeiro a
segurar Alexandre depois da mãe. Ele dormia o sono dos inocentes e
eu enrolei ele num pedaço de algodão cru que havia na sacristia.
-
Leva teu menino para casa, Bárbara. E descansa essa semana, mulher
de Deus!
Bárbara
riu.
-
Se eu descanso, padre, nem eu, nem o menino temos o que comer naquela
casa!
Bárbara
arrumou o tabuleiro na cabeça e na porta da igreja o menino abriu o
berreiro. Sem cerimônia a negra colocou o seio para fora e ofereceu
ao menino que mamou com fervor.
-
Sua benção?
Ainda
pediu. Enquanto usava o pano que eu cobrira a nudez do menino para
esconder-lhe ( o seio) do sol.
-
Que Deus te abençoe e a teu menino, Bárbara.
Ela
ascentiu e saiu rebolando. Desceu a Cidade Alta pela rua Grande,
cruzando a praça e passando em frente ao Senado da Câmara e a
Cadeia. Ainda ouviu uns mexericos dos presos que a avistaram passar
pelas grades do porão.
-
Nasceu o menino, Bárbara? Então já estás pronta para outro!
Gritou
um.
Ela
ignorou. E só tirou o menino do seio quando chegaram ao cruzeiro da
bica. Lavou-se lá enquanto o menino descansava na areia. Limpa.
Amarrou o menino no seio como fazem as caboclas, voltou o tabuleiro
para a cabeça e Alexandre foi ninado ao som de seus gritos de
vendedora:
-
Vendo raivas! Vendo grude! Raivas e Grude!
Alexandre
cresceu na barra da saia da mãe, seguindo-a para todos os lugares.
Às vezes correndo na sua frente e gritando o que a mãe vendia em
seu lugar. Mais tarde do seu lado, ajudando-a a caminhar. Não era um
menino de muitos folguedos! Trabalhava com a mãe, vendendo os doces,
trabalho que assumiu quando ficou adolescente enquanto a mãe ficava
em casa preparando novos tabuleiros e frequentava a igreja todos os
domingos para a missa e todas as quartas para aprender a ler.
Ensinei-o pessoalmente. De todos os alunos que tive, fora Alexandre o
mais interessado em aprender as letras. Aos dez, já era o melhor da
classe, tanto para ler, como para as contas. Foi nesta idade que
assumiu o trabalho da mãe e trazia para casa o sustento.
Cresceu
bonito e forte, caminhando pelos charcos da Ribeira, pelas dunas do
Areal até a Limpa, chegava a vender os doces de sua mãe para os
soldados aquartelados no Forte dos Reis, vizinhava os sítios e as
casas de veraneio na Cidade Nova, percorria as poucas casas do Barro
Vermelho e às vezes chegava a Lagoa Seca. Muito raramente, quando
decidia isso, começava sempre por lá, aparecia para vender raiva
para os filhos dos pescadores em Areia Preta.
Adolescente,
frequentava com amigos as feiras do Passo. Suas bodegas baratas que
vendiam cachaça dos engenhos da região e os bailes cheios de negras
e mulatas, como ele, além de caboclos e caboclas perfumadas como
flor de juá. O Passo era o divertimento destes jovens pobres e de
pouca fibra moral. Eu ralhava com ele todas as vezes que me
confessava que tinha ido. E eu e o vigário da cidade reclamávamos
com o presidente sempre que nos encontrávamos da libertinagem que
acontecia por ali, mas ele fazia ouvidos moucos. Os traços delicados
do rosto de Alexandre e a beleza de príncipe africano, ambos herança
de sua mãe, faziam de Alexandre um par cobiçado no Passo, naquelas
bailes iluminados a luz de lampião. Mas Alexandre era um moço
temente a Deus! Não se engraçava com as raparigas, preferia a
companhia de seus amigos, os verdadeiros culpados de sua presença
lá.
Em
outubro, mês da festa do Rosário, Alexandre sempre estava na
igreja. Ajudava desde os preparativos, como caiar as paredes ou
limpar o terreiro, lavar a igreja ou consertar o telhado. Seus
músculos poderosos eram uma ajuda imprescindível, mesmo com a ajuda
da irmandade. Participara da festa a primeira vez ainda menino e não
perdera uma ano desde então. Fui eu que abençoei quando, em um ano,
ele apareceu-me com uma imagem mal feita de Nossa Senhora, esculpida
em madeira de goiabeira. Ele amarrou-a no pescoço com uma corda de
algodão assim que dei minha benção, não sem antes beijar com
fervor. Saiu de lá com uma felicidade no olhar que eu nunca tinha
visto antes. Era um tesouro para ele. Único como se fosse feito do
metal mais precioso de todos!