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terça-feira, 12 de novembro de 2013

Hatti: Os Rituais Para Ser Homem


Um ritual hitita chamado Paskuwatti pretendia curar homens da impotência sexual. Ele foi encontrado entre vários documentos cuneiformes dos arquivos de Hattusa, a capital do império, e traduzido em 1950 por Goetze, porém foi somente em 1987 que o texto foi comentado em uma base filológica extremamente mais sólida por Hoffner. O ritual deveria ser usado quando um homem é estéril ou não tem desejos por mulheres, contudo ele tem sido interpretado como a cura para os comportamentos homoeróticos, porém, aparentemente, somente a cura para o comportamento passivo durante o ato sexual entre dois homens. O ritual não cita nada sobre se colocar na situação daquele que penetra outro homem, contudo critica a posição passiva na relação sexual como uma situação feminina. 
A posição feminina na sociedade hitita era extremamente inferior a masculina. Inclusive, existe uma fórmula, um feitiço, que era utilizado para enfraquecer os exércitos inimigos no qual se desejava que a deusa Ishtar transformasse-os, simplesmente, em mulheres. O feitiço diz: "Tome daqueles homens sua força, sua saúde robusta, suas espadas, seus machados de batalha, arcos, flehcas e adagas. E traga-os para Hatti. E coloque em suas mãos o fuso e o espelho de uma mulher. Vista-os como mulher! Coloque em suas cabeças o kuressar (espécie de enfeite de cabelo feito com um tecido/lenço). Tome deles a própria vontade". Sendo assim, enxergamos aqui uma sociedade em que a posição masculina do guerreiro (os símbolos que são retirados dos homens são todos associados a guerra) era considerada a única de algum valor, neste caso qualquer situação social que coloque um homem distante da posição de guerreiro que eles haviam construído deveria ser combatida, no caso, também a posição de passivo (e submissão) no ato sexual. É importante ver que o feitiço hitita termina desejando que eles percam toda a "própria vontade", colocar-se na posição de passivo no sexo entre homens seria colocar-se numa posição feminina e, portanto, uma posição sem vontade própria, é contra isso que o ritual Paskuwatti vai então agir: retirar o homem de um lugar subalterno ao qual ele não pertence.
Segundo o ritual os símbolos femininos por excelência são o fuso e a roca, ferramentas da tecelagem da lã, enquanto os masculinos são as armas, principalmente o arco e a flecha. E estes símbolos eram trocados pelo fiel e o sacerdote que repetia: "Eu mesmo retiro estes objetos femininos de você e te dou estes objetos masculinos de volta. Você então abandona este comportamento feminino e assume a partir de agora o comportamento de um homem" (§4). Jared Miller é quem melhor argumenta que este ritual trata-se sobretudo de fazer com que um homem deixe de ser dominado/possuído numa relação sexual com outro homem e assuma seu lugar de dominação, seu lugar natural (para a sociedade hitita) sendo homem.
Outro ritual, de Anniwiyani, também pretendia libertar um homem do desejo sexual relacionado a ser penetrado por outros homens. O texto deste ritual foi publicado pela primeira vez em 1927 por Edgar H. Sturtevant, porém somente oito anos depois temos a sua primeira tradução completa, acompanhado de um comentário filológico. O ritual evoca os deus tutelar daqueles que fazem sexo com homens, Lamma, e seu propósito final é fazer com que aquele que costuma ser passivo no sexo tenha relações com uma virgem sob a vigilância dos deuses para abandonar seu comportamento. O ritual começa assim: "Então Anniwiyani, mãe de Armati o auguro, serva de Hurlu, quando eu começo a cerimônia do Lamma, o efeminado, sigo (...)", o texto segue citando cada passo do ritual: ao cair da noite aquele que quer abandonar a posição passiva no ato sexual tem em seus pés e mãos pedaços de madeira amarrados com lã colorida, azul e vermelha, também em torno de sua cama, de sua carrugagem e do seu arco. Ele adormece com esta lã e quando acorda as cortas fora. A virgem então é trazida e é ela quem grita: "Saia daqui, Lamma, o efeminado; e que venha a nós, Lamma, o másculo". Durante a cerimônia um portal é construído em um local isolado, em torno dele são colocadas oferendas a Lamma, o efeminado, dos dois lados do portão pelos familiares daquele que agora tem a virgem na sua cama. Todos eles atravessam o portal e quando o último atravessa o portal é demolido e a estrada que leva a ele bloqueada e todos voltam a cidade, onde, na porta daquele que fez o ritual, colocam oferendas a Lamma, o másculo. 
A grande diferença entre estes dois rituais, segundo Ilan Peled, é que enquanto o primeiro ritual era pessoal, este último envolvia toda a comunidade, ele afirma que este ritual tem duas partes: uma que envolve o paciente que quer se curar e outra que envolve sua comunidade. Contudo ele também reconhece que a posição feminina neste caso também é o que está em jogo. Para o ritual de Anniwiyani a mulher não é importante nem em relação a fertilidade já que para eles a única potência capaz de gerar vida é oriunda do próprio homem (o sêmen). Inclusive o kuressar, peça utilizada no vestuário feminino, tem, segundo Peled, a origem da palavra ku(wa)liya, que significa "seja calmo, seja passivo", ou seja, faz parte do próprio ser mulher a ideia de que você tem que ser passivo e obedecer aos outros.

9 comentários:

  1. Um post excelente muito interessante e que dará para uma interessante reflexão! ^^

    Abreijos :3

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  2. Podem me passar 10x nos portais que nada acontecerá

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    1. Kkkkkk, pode deixar anônimo, nem tentaremos
      Kkkk

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  3. Vixi, confesso que esse texto me deixou muito confuso Foxx, (tive que ler três vezes pra dá uma ajudada rs), mas vamos lá, minhas dúvidas são:

    1 - Depois de ler o texto pela primeira vez fiquei confuso, para os hititas, era normal ou não a homossexualidade? ou tipo, era aceitável desde que o homem não quisesse ser passivo para sempre? (essa foi a parte que me confundiu)

    2 - O mesmo Lamma que era tido como Lamma, o másculo, era Lamma, o efeminado?

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    1. Que bom que vc teve dúvidas, Ariano, quer dizer que estava interessado. Vamos aos esclarecimentos: 1) se vc lembra do último texto, não há nada na cultura hitita contra o homoerotismo diretamente, porém, como vimos, havia contra os passivos sim. O problema é a situação social das mulheres, o fato deles considerarem-nas inferiores acaba se refletindo na situação social dos passivos, nada diferente de nossa sociedade. 2) eu explicarei melhor sobre os Lamma em outra postagem, mas são deuses diferentes.

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  4. post interessantíssimo e muito instrutivo. mais uma vez, parabéns pelo conteúdo do blog, a leitura aqui é sempre prazerosa. :)

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    1. Que bom que você gosta, Antônio. Fico muito feliz em saber disso.

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  5. Achei muito interessante... Lembrei imediatamente de O Arco e o Cesto, de Pierre Clastes.

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    1. Não conheço o Pierre Clastes, o que te fez lembrar dele, Eddie?

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" Gosto de ouvir. Aprendi muita coisa por ouvir cuidadosamente."

Ernest Hemmingway