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domingo, 2 de novembro de 2014

Creta: A Taça dos Dois Amantes

, em Natal - RN, República Federativa do Brasil





É bem comum encontrar entre os vestígios arqueológicos cretenses alguns que fazem referência aos seus rituais homoeróticos. Por exemplo, em um rústico campo dedicado a Hermes e Afrodite, aproximadamente 60 quilômetros a leste de Hagia Triada, no Monte Dikte, aonde ficariam as cavernas nos quais Zeus havia sido criado, há 1200 m acima do nível do mar, escavações lideradas por Angeliki Lembessi descobriu inúmeros objetos de bronze oferecidos as deidades, junto a restos de sacrifícios animais, sobretudo touros.
Entre estes objetos de bronze encontra-se uma taça onde estão representados dois homens que data do período minoico (antes de 1100 a.C.), hoje, guardada no Louvre, através da datação do carbono, chegou-se a uma data aproximada dos séculos VIII ou VII a.C. Ela consiste de um casal masculino sendo que um deles é barbado e o outro não, o imberbe possui um longo e flutuante cabelo cheio de cachos em sua fronte. Bruce L. Gerig afirma que várias interpretações foram oferecidas para este par, por exemplo, que representam um deus e um sacerdote, um rei e um comandante, ou crianças representando dignitários, isto é, que durante muito tempo os arqueólogos e historiadores fugiram de enxergar as relações homoeróticas que encontravam em seu caminho por causa do próprio preconceito, mas os outros inúmeros achados começaram a deixá-los sem saída.
Como esta outra peça encontrada: o mais velho traz consigo um arco de chifre, e agarra o mais jovem pelo braço e chama-o para perto. O mais jovem carrega uma cabra morta sobre os seus ombros, provavelmente um animal sacrificial. Eles estão olhando fixamente um para o outro, com as pernas e os pés se tocando, e os órgãos genitais do mais jovem estão expostos. Outra peça de bronze, datada de 750 a.C., e hoje sob a guarda do Museu Heraklion, mostra dois jovens de capacete, nus, um mais velho que o outro. Ambos exibindo seus pênis eretos ficam um do lado do outro de mãos dadas. No entanto, outro peça de bronze datada do século VII a.C. mostra um rapaz, nu, exceto por uma capa decorativa longa e sandálias, segurando um arco e aljava. Esses objetos parecem pertencer à mesma tradição refletida na Taça Chieftain, encontrado em 1903, no clube de jantar masculino do palácio de Hagia Triada, e datado do Primeiro Período Minóico (1.650 a.C. - 1500 a.C.). Ela é esculpido em serpentinito e retrata dois jovens imberbes, um mais velho que o outro (perceptível pela diferença de altura e no penteado), vestidos com saiotes e botas de cano alto e uso de jóias. O mais velho apresenta-se com uma espada e o mais novo com uma lança, enquanto no verso das copo outros jovens (amigos do amante, provavelmente) trazendo três pedaços de couros de boi, provavelmente para fazer um escudo. Na taça, o  mais velho ainda dá ao mais novo uma espada e um javali.
Gerig nos lembra do rito iniciático que os garotos cretenses passavam para prepará-los para a vida adulta (relatado por Ephoris, historiador do século IV a.C., e preservada por Estrabão, século I a.C.). Eles eram separados em agelae (rebanhos) nos quais eram treinados para se tornarem soldados. No entanto quando um rapaz mais velho, chamado philetor (amante), apaixonava-se por um jovem mais novo por causa de sua beleza, coragem e boas maneiras, ele capturava seu escolhido, chamado parasthatheis (aquele que fica ao lado, parceiro), com o consentimento dos pais e ajuda dos amigos. Este então era levado para o andreion local (clube onde homens comiam juntos), do qual ele se tornava membro por toda sua vida, o pretendente dava-lhe presentes e, depois de dois meses que passavam o tempo caçando e em festas, levava-o de volta para a casa dos pais (acompanhado por alguns amigos do rapaz). Diante dos pais, o amado afirmaria se estava ou não feliz com a forma que seu amante o havia tratado, e se estava, apresentava-se diante dos jovens com os trajes militares que o philetor havia lhe dado, um boi e uma taça, além dos outros presentes caros que havia recebido. Depois disso o jovem passava-se a se chamar kleinos (famoso), passava a usar as roupas de adulto, davam-lhe assento especial nos bailes e corridas e outras honrarias. Todos os jovens kleinos casavam-se na mesma cerimônia com as esposas que seus pais haviam conseguido para eles. 
Gerig afirma que esta tradição apresenta todos os elementos comuns a um rito de passagem: iniciação para um grupo seleto, reclusão durante um tempo, um membro mais velho da comunidade ensina jovens certas habilidades especiais, retorno para a sociedade aonde o iniciado recebe um novo status. As peças documentam que esta tradição de Creta continuou ao longo de muitos séculos, e que as ofertas posteriores deixadas por pares de amantes neste santuário tornaram-se mais elaborados e eroticamente explícitos. Contudo, existe um problema: elas são ex-votos, isto é, peças que eram oferecidas ao santuário do deus em agradecimento a algo que se havia conseguido, no caso, o amante. Os mais velhos deveriam agradecer aos deuses por terem conseguido o amor daqueles por quem haviam se apaixonado através destes presentes sob risco de atraírem para si o ódio da deusa, inicialmente Leto, depois Afrodite, que fatalmente levaria seu amado para longe dos seus braços. Estas peças provam que não era somente um ritual em que os membros participavam somente por obrigação social, estas eram relações apaixonadas entre homens, dentre os quais alguns que temiam perder seus jovens amantes por causa de caprichos divinos. 



14 comentários:

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    1. a história é toda fascinante não é, Francisco?
      =)

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  2. Todas estas questões da cultura grega são fascinantes ...

    Beijão

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  3. legal Foxx! vc sempre traz coisas interessantes em seu blog! e parabens pelo novo visual CLEAN do blog! ficou legal!

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    1. Que bom que vc gosta dos meus temas, meu querido, de verdade, as pessoas parecem não gostar quando falo de História. Mas ai vem alguém importante como vc e gosta, então vale a pena!

      =)


      E que bom que gostou do visual do blog. Tentei ser minimalista.
      =)

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  4. Gostei do visual também! Talvez esteja na hora de mudar o meu. (rs) Vamos ver se eu consigo entender... por tudo o que você já escreveu, podemos deduzir que a homossexualidade (não sei se o conceito se aplica à cultura grega antiga) era apenas “praticada” entre alguém mais velho e um mais novo, como uma espécie de aprendizagem para a vida? Ou seria apenas a maioria dos casos, pois, pelo que lembro, você já comentou sobre certos casos (lendas ou fatos) de amor entre iguais? Pode ser uma falha da minha memória, ou mesmo falta de não ler todos os seus posts, não sei, mas sempre fico com essa dúvida.

    Abraços

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    1. Ótima pergunta, Adriano.
      No caso cretense (eu ainda não estou falando das instituições gregas aqui), a maior parte das referências que nos restaram estão associadas a este padrão philetor-kleinos, sobretudo estas referências materiais/arqueológicas (que são inúmeras, mas quando nos debruçamos sobre os docomentos literários nós temos uns poucos outros exemplos, como os sacerdotes que praticavam prostituição ritual (estes relacionamentos se davam com certeza com homens adultos) e também entre os guerreiros. A questão aqui é que as relações entre homens mais velhos e adolescentes com certeza deixaram muito mais referências do que qualquer outro tipo de relação homoerótica (este conceito é mais preciso do que homossexualidade) que possa ter existido no mundo creto-micênico, no entanto, na Grécia (falarei disso melhor nos próximos capítulos) a coisa é um tanto diferente.

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  5. Mais uma história super interessante !

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  6. Só uma duvidazinha de um leigo: a civilização cretense precede a civilização grega? Lembro das aulas de história (ainda curso o terceiro médio) que a esse período davamos o nome de pre-homerico...

    O uso de "homoeróticas" e não "homoafetivas" denota apenas uma função... Ritualística, sem vínculos? Ou estaria eu fazendo uma análise sob uma perspectiva muito atual, já que até as relações afetivas sofrem mudanças com o tempo?

    Daigo

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    1. Olá, Daigo.
      Sim, a civilização cretense precede a grega, contudo eu não gosto de utilizar o termo pré-homérica como se ela fosse já Grécia, mas de um período antigo, é uma civilização completamente diferente, com língua e cultura próprios que eles exportaram para a Grécia quando o mesmo povo que dominou o território grego também dominou a ilha. Gosto de chamá-los pelo nome da ilha exatamente para chamar atenção para as diferenças que existem entre eles.
      Eu uso de homoerótico por dois motivos: 1) para distinguir de homossexualidade, termo que só existe após o século XIX, que tem suas características claras e que se opõe a heterossexualidade; 2) para distinguir de homoafetividade porque este conceito é amplo demais, nele se incluem relações de amizade entre pessoas do mesmo sexo e também relações familiares entre pais e filhos e irmãos do mesmo sexo, tudo isso cabe dentro do conceito.
      Homoerotismo ele não se refere somente a relacionamentos sem vínculos, mas ele se refere a um tipo de situação social em que as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo não distinguiam socialmente um indivíduo do outro, isto é, o fato de um homem fazer sexo com outro não o torna gay e o fato de um homem fazer sexo com uma mulher não o torna hétero, as relações sexuais não definem a identidade sexual de um indivíduo para a sociedade, sobretudo.
      Sobre as relações afetivas, eu poderia dizer a vc que toda relação homoerótica é uma relação homoafetiva, mas nem toda relação homoafetiva é homoerótica, entende? E eu estou me detendo as relações homoeróticas especificamente.

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  7. Tantos vestígios que não dá pra negar nem com todo o preconceito do mundo... rs

    QUE BOM!

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" Gosto de ouvir. Aprendi muita coisa por ouvir cuidadosamente."

Ernest Hemmingway