Aquela família ainda mantém tradições ancestrais. Foram muito ricos no início do século passado, e apesar do dinheiro ter se esvaído por entre os dedos do herdeiro, por causa de seus erros envolvendo mulheres, e por causa de sua mãe superprotetora que pagou para que cada erro fosse escondido, nunca perderam a pose que se mantinha graças ao dinheiro, às terras, às fazendas que ocupavam todo o munício às margens do rio Ceará-Mirim, no agreste potiguar. Se reuniam na festa do nascimento de Nosso Senhor todos os anos, chegavam contando vantagem dos seus carros novos, com suas roupas de gala, e de quanto Deus era generoso com aqueles de sobrenome espanhol, mas não se encontravam o resto do ano todo porque não eram família, só compartilhavam um sobrenome. Ao redor da mesa grande, em que o herdeiro agora senta a cabeceira, porque seu pai e avô, que ergueram o patrimônio, não estão vivos para ver a decadência de sua descendência, se desfiam discursos pomposos. Primeiro fala o herdeiro, que emposta a voz como um bacharel de Chico Buarque, fala de pé, respirando compassadamente, contando as palavras para atingir um clímax, ele compete com alguém para ver quem faz o discurso mais comovente. Segue-se o primogênito da família, convertido ao pentecostalismo, acrescenta a oratória de advogado de porta de cadeia que aprendeu com o pai as habilidades desenvolvidas para o púlpito da igreja porque agora ele quer ser pastor, quer ovelhas o seguindo para acarinhar seu ego. O segundo filho homem fala em seguida e acrescenta agora uma emoção batista que difere da religiosidade racional do primogênito. O segundo filho sempre fora um homem mais emocional, alguém que se tocara profundamente pela gravidez de sua primeira esposa e agora da segunda, e isso transparecia no discurso em que ele clamava a Deus por bençãos a todos que estavam sentados em torno da mesa recheada como almoço de domingo de família italiana. Clamou por bençãos ao seu filho que ainda estava no ventre. Porém, não sentíamos cheiro de incenso no ar, o cheiro que os envolvia era sem sombra de dúvida do queijo derretido da lasanha e não do peru que aguardava no forno. A pomposidade daqueles discursos só era quebrada pelo terceiro filho, que nunca conhecera a riqueza ancestral de sua família, fora criado como um menino comum que sentava a mesa sem camisa para fazer o almoço apesar dos protestos de seu pai que dizia que aqueles não eram trajes para sentar a mesa. O pai, o herdeiro, desistiu logo de converter seus filhos mais jovens à vida que fora criado, mas que não correspondia em nada ao que ele podia pagar hoje. A matriarca então, uma senhora de 90 e tantos anos, casada com a riqueza, mas abandonada por esta na sua velhice, é quem encerra a cerimônia. Fala também como quem ainda tem riqueza na voz, mas não nas vestes, nem na pele, nem nas orelhas. Ela oferece a ceia para todos e aquela família mostra novamente que aquela riqueza é apenas uma capa que ninguém sabe mais como usar porque avança com uma ferocidade sobre os pratos de comida como se temessem que aquela mesa lotada de tigelas, sopeiras, molheiras e travessas não seriam o bastante para alimentar a todos. O terceiro filho é o único que espera, todos se servirem, e ai por fim coloca no seu prato um pouco de comida desejando profundamente uma salada. E todos brindam: Feliz Natal!
Que natal triste! E o pior é que milhões de pessoas passam o natal assim: usando máscaras. Elas cabem bem esta época!
ResponderExcluirE o que é a decadência da sociedade nordestina hein?
sim, é exatamente isso, Serginho, e o mais interessante é como esses casos de famílias que eram ricas em meados do século passado e não o são mais são comuns aqui no nordeste.
ExcluirBom dia
ResponderExcluirUma analise actual que se vai agudizando. A cena da família.
Desejo-te um Novo Ano com saúde e tudo aquilo que está nos teus sonhos e objectivos. Boas realizações pessoais.
Que o nosso mundo seja melhor, mais humano e mais justo, que o nosso olhar seja capaz de descobrir a beleza da vida em cada manhã que nos desperta.
Um abraço e um agradecimento pela tua amizade.
Feliz ano novo, Luís.
ExcluirFamílias! Todas iguais ... todas com seus prós e seus contras ... com suas afetividades e suas afetações ... com suas histórias e suas estórias ... e, sempre, com alguma ovelha desgarrada a contrapor a tudo.
ResponderExcluirBelíssimo texto Foxx ... uma contundente análise antropológica do viver em família.
Bjão e fica bem ...
Que 2013 seja um ano em q as esperanças sejam concretude ...
Ah, afetação é a palavra certa para descrever a minha família, Paulo.
ExcluirInteressante essa análise, quando convívio com meus parentes mais velhos percebo essas marcas do passado.
ResponderExcluirUm excelente ano novo e muitas realizações. Abraços!
Perde-se o dinheiro mas não se perde a pose. Como tem gente assim!
ResponderExcluirBão
desde o ano passado me livrei disso, sempre parto antes da ceia para a casa de amigos, onde reina a alegria e a real palavra de confraternizar.
ResponderExcluirah, aqui em casa eu tenho que ir, é preferível a ter que enfrentar uma confusão tremenda. No ano novo é outra reclamação, meus pais acham que temos que passar todas as festas com eles, porque família e tal, eles não entendem que não há família ali de fato.
ExcluirBaseado em fatos reais???
ResponderExcluircada minuto interminável do discurso do meu pai e dos meus irmãos.
ExcluirAinda bem que havia o terceiro filho...
ResponderExcluirBelo texto, que inicialmente me levou a uma cena algo como aquela de Festa de Família, mas aos poucos fui vendo a antológica ceia de outro filme (italiano). Por fim, o terceiro filho, que humanizou a cena. Ainda havia esperanças ali!
pois é, o terceiro filho sou eu. =)
ExcluirSim!
ExcluirUm ano realmente novo e muito feliz pra você!
Forte abraço!
Foxx, Feliz 2013 muito iluminado e especial para vc, e de preferência que venha com um belo amor :)
ResponderExcluirbjos
Nossa, acho que tenho de pensar neste texto.
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