1 | No terceiro ano do reinado de Joaquim, rei de Judá, Nabucodonosor, rei da Babilônia, veio a Jerusalém e a sitiou. |
2 | E o Senhor entregou Joaquim, rei de Judá, nas mãos de Nabucodonosor, e também alguns dos utensílios do templo de Deus. Ele levou os utensílios para o templo do seu deus na terra de Sinear e os colocou na casa do tesouro do seu deus. |
3 | Depois o rei ordenou a Ashpenaz, o chefe dos eunucos da sua corte, que trouxesse alguns dos israelitas da família real e da nobreza: |
4 | jovens sem defeito físico, de boa aparência, cultos, inteligentes, que dominassem os vários campos do conhecimento e fossem capacitados para servir no palácio do rei. Ele deveria ensinar-lhes a língua e a literatura dos Caldeus. |
5 | De sua própria mesa, o rei designou-lhes uma porção diária de comida e de vinho. Eles receberiam um treinamento durante três anos, e depois disso passariam a servir o rei. |
6 | Entre esses estavam alguns que vieram de Judá: Daniel, Hananias, Misael e Azarias. |
7 | O príncipe dos eunucos deu-lhes novos nomes: a Daniel deu o nome de Beltessazar; a Hananias, Sadraque; a Misael, Mesaque; e a Azarias, Abede-Nego. |
8 | Daniel, contudo, decidiu não se tornar impuro com a comida e com o vinho do rei, e pediu ao chefe dos oficiais permissão para se abster deles. |
9 | E Deus fez com que o homem fosse misericordioso com Daniel e tivesse simpatia por ele (chesed v'rachamim Daniyye'l). |
Este versículo nono do Livro de Daniel é objeto de controvérsia até hoje. Sua tradução tem sido questionada e discutida pelos especialistas em hebraico e aramaico sem que se chegue a absolutamente nenhum consenso. Uma corrente defende uma tradução que diria que existe uma relação homoerótica entre Daniel e o eunuco babilônico, outra afirma que como Ezequiel em seu livro (14:14,20) diz que Noé, Jó e Daniel são os únicos homens justos o bastante para não serem atacados se entrassem na cova de leões, pois seguiam diretamente os preceitos da lei do Levítico, portanto, ele, necessariamente, não poderia ter relações homoeróticas e continuar um homem justo.
Bem, como o segundo argumento é uma falácia homofóbica que pressupõe, antemão, que as leis do Levítico realmente tratam as relações homoeróticas como crime - o que vimos anteriormente que não. Esse argumento também leva em consideração a Bíblia como um texto escrito sem fazer referência ao contexto em que sua escrita se dava. Enquanto o Levítico faz referência a uma tribo nômade que vagava pelo deserto e que provavelmente foi colocado no papel a época do reino de Davi, em que os hebreus estavam em guerra contra os filisteus e cananeus e seus hábitos eram demonizados; o Livro de Daniel, que provavelmente foi escrito somente no século II ou III depois de Cristo, faz referência a uma corte culta, por volta de 640 a.C., que estava em guerra com os babilônicos e via seus filhos serem levados como cativos e transformados em eunucos na corte do rei Nabucodonosor.
Outro elemento que também é simplesmente ignorado pelo argumento de que Daniel é justo: Daniel é um eunuco (2Rs 20.17,18; 2Rs 24.1,12-14; Dn 1.3,7) que serviu a três reis (Nabucodonosor, Belsazar e Dario), sendo que logo conquistou o status de governador de província e também primeiro-ministro. Mas ele é um eunuco que fora escolhido pela sua beleza e inteligência aos 17 anos. Ser eunuco, per si, já o tornaria pelas leis do Levítico impuro diante do deus de Israel, pelo menos até o retorno do exílio na Babilônia quando a lei do Levítico foi sumariamente revogada.
O problema da tradução continua.
B.A. Robinson afirma que alguns religiosos liberais detectaram a possibilidade de uma relação homoerótica entre Daniel e Ashpenaz por causa das palavras hebraicas
chesed v'rachamim utilizadas no versículo 9. A tradução mais comum de
chesed é "misericórida", já
v'rachamin está em uma forma plural que é utilizado para enfatizar a sua importância e, infelizmente, a palavra tem vários significados, de misericórdia a amor físico. Robinson afirmar que não é razoável crer que Deus fez com que Ashpenaz "fosse misericordioso e tivesse misericórdia" por Daniel. A repetição não faz sentido, segundo o autor americano, consultor do site
Religious Tolerance, uma tradução mais razoável seria, portanto, que "Ashpenaz mostrou misericórdia e caiu por amores por Daniel".
Essa tradução porém é inaceitável para a maioria dos estudiosos da Bíblia (católicos e evangélicos) de hoje, contudo a versão inglesa chamada King James, cuja última versão é de 1769 traduz: "Now God had brought Daniel into favor and tender love with the prince of the eunuchs" (KJV), "Agora Deus levou Daniel aos favores e ao terno amor do príncipe dos eunucos". Para Robinson essa parece a tradução mais próxima da verdade e ela foi realizada no século XVIII ainda. Ele ainda questiona se eles poderiam consumar sexualmente a sua relação, sendo ambos eunucos, contudo ser eunuco não significa necessariamente sem pênis, somente sem testículos, questão de fato pouco importante.
O argumento que tenta proteger Daniel de uma mancha moral que nenhum personagem bíblico pode ter parece não ter sido um problema ainda no século XVIII na tradução do rei James, sobretudo porque a imagem dos eunucos ainda estava muito presente tanto no mundo árabe como na Índia, regiões que os ingleses mantinham importantes entrepostos comerciais e, com isso, provavelmente entendiam melhor o relacionamento que existia entre eunucos nas cortes orientais; mas outro motivo também pode advir da inexistência de uma marca moral sobre o homoerotismo que só seria imposta pela medicalização do século XIX que criou o homossexualismo.
Fico por entender porque a sociedade "involuiu" nesse contexto. O homoerotismo está presente em livros, obras de arte, histórias etc.... desde a mais antiga sociedade já conhecida; e ainda nos dias atuais, não é aceito como natural da raça vivente, humana e animal.
ResponderExcluirIsso sempre me espanta.
Bom post Foxx, como sempre.
Beijos
Essas palavras com trocentos significados… vai se saber o que elas exprimiam na realidade do tempo! Acredito que também não possamos determinar até que ponto o homoerotismo era algo assim tão moralmente aceito. Tudo depende do “constructo” teórico, a partir do qual se analisam os fatos, não é verdade?! A única certeza que vejo é o pequeno trecho sobre a “patologização” da homossexualidade, a partir do séc. XIX. Sobre isso não resta dúvida. Um dia desenvolve mais esse tema. Sei que você é super capaz.
ResponderExcluirchegaremos ao século XIX, Cesinha, aguarde. hehehe
Excluire bem, tem sim como determinar até que ponto o homoerotismo era aceito, dá pra ver por trechos como o Levítico e o Deuteronômio, o problema neste trecho não é o texto bíblico que aqui parece aceitar bem mais o homoerotismo, mas os tradutores que se colocam sobre ele. É mais importante aqui desconfiar dos tradutores, esses sim, dependendo de que lado estão vão traduzir de um jeito ou de outro.
Oi Foxx!
ResponderExcluirO livro de Daniel é realmente uma obra complexa e singular dentro do AT. Complexa porque foi redigida em várias línguas – hebraico, aramaico e grego. Singular porque abre uma nova perspectiva da profecia já esgotada – a apocalíptica – caso único entre os escritos vétero- testamentários.
Do ponto de vista histórico, as diversas narrações tem imprecisões entre si, fruto dos mais variados relatos recolhidos ao longo dos séculos, embora reflitam a forma de vida da dispersão judaica. Mas, na redação definitiva, a pretensão parece ser clara: oferecer o ideal de piedade judaica em meio as perseguições de Antíoco IV , antes mesmo da revolta macabaica.
A obra seria uma ficção? Usando como personagem uma figura conhecida do universo semítico – Daniel ( Dnil ) – cuja capacidades mais salientes são a interpretação dos sonhos e o amor a justiça.
O relato em questão tem como fundo a observância dos preceitos judaicos – alimentares- em relação aos usos das outras nações, uma forma de reforçar a identidade nacional em meio as incertezas provocadas pela dinastia dos Selêucidas. E a forma já é conhecida e utilizada no AT – tem um paralelo no livro do Gêneses, na história de José e no livro de Ester.
- - - -
O termo v’rachamim, exprime o apego instintivo de um ser ao outro. Segundo os semitas, tem sua origem no seio materno, nas entranhas - nós diríamos: no coração. É ter amor e ternura como a mãe tem pelos filhos.
Já o termo chesed, significa ter misericórdia, relação que une duas pessoas e implica fidelidade. Com isso, a misericórdia recebe uma base sólida, não é mais simplesmente o eco de um instinto de bondade, mas uma bondade consciente e intencional. Não é mais uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta.
Nas diversas traduções vernáculas fica difícil compreender com exatidão a amplidão dos termos semíticos. Mas , é claro, tudo depende de uma compreensão mais ampla dos textos.
Não conhecia essa interpretação, preciso me aprofundar no assunto.
olha, eu consegui falar algo que o Renato não conhecia. tow melhorando. hehehe
Excluirmas vc acha a tradução do Robinson possível?
Difícil afirma alguma coisa, até porque não conheço a obra de B. A. Robinson.
ExcluirContudo, a tese é bem interessante e abre novas perspectivas e deve ser levada a sério.
Mas a questão da fonte é que eu acho mais delicada. A tradução da King James provém de um textus receptus, será que ela encontra concordância com os textos massoréticos mais antigos?
é... não tenho essa informações sobre a tradução da King James, precisamos ver...
ExcluirGenteeeeeeeeeeee... não sei o que atrai e interessa mais: teu post ou os comments inspirados - e profundos - como este do Helmut. Quero ser "quenem" vocês quando eu crescer!
ResponderExcluirPresença do Foxx confirmada, então??! Uebaaaaa! O dress code é muita pluma, muito paetê e muito lurex... #aloka... hahahahaha! Hugzones!
o Renato dá show nos comentários né?
Excluir