Google+ Estórias Do Mundo: PRESENTE: Como Vinho

sábado, 15 de dezembro de 2007

PRESENTE: Como Vinho

Horário de almoço. Família reunida (ou quase): eu, minha mãe, meus dois irmãos. Almoçamos feijão branco, arroz e atum. Termino, ergo-me, passo pela tv ligada para ninguém que exibe o Video Show em que Sarah entrevista Maria Paula sobre o novo bebê que ela aguarda. "Só três meses, não dá nem p'ra notar ainda". Passo pomada no cabelo. "Ela que percebeu que eu estava grávida". Coloco a bolsa a tira-colo. A reportagem termina. "Isso que é uma reportagem de conteúdo", comento. Cruzo a cozinha e vou escovar os dentes e, do banheiro, escuto. "Ele é o contrário do vinho, quanto mais velho, pior fica". Aguço os ouvidos. "Continua muito arrogante". Eu? Por causa de um comentário contra o Vídeo Show? Retorno, controlado: "Você é arrogante!".
E todas as humilhações que enfrentei calado passam pela minha frente. "Florzinha", minha mãe, enquanto eu ajudava ela a arrumar a casa e me detinha encantado com as plantas que ela cuidava tão carinhosamente. Acho que ali eu desisti de ser botânico. Na rua. Passo com meu pai, tenho dez anos. Um menino de calções, descalço e sujo aponta o dedo para mim e me chama de bichinha. Meu pai não diz nada com o garoto, apenas meu puxa pelo braço e reclama o caminho todo para casa do meu cabelo, do meu jeito de andar, da minha mão, da minha voz. E eu calado. Acho que ali eu desisti de ser homem. Meu irmão mais velho adentra as portas de casa exigindo que eu levasse uma surra. Eu tinha treze anos. Ele e os amigos na rua tinham-me visto passar voltando do colégio. Eu trazia muitos livros e os carregava contra o peito porque na semana anterior tinha visto na tv que essa era a melhor forma de proteger a coluna. "Mas isso é jeito de mulher carregar livros". E gritou. "Os caras da rua ficam todos rindo". Meu pai não me bateu, mas meu irmão disse que tinha vergonha de mim. E ali desisti de ter irmãos.
Humilhado. Pelos de casa. Na rua aprendi a olhar para um ponto fixo e me dirigir a ele. Não vendo olhares. Não ouvindo comentários. Eu parto com o nariz apontado para o céu. "Levanta a cabeça senão montam em você". Aprendi também a responder críticas com trabalho. Se eu fora o filho do qual se envergonhavam, me tornei e primeiro a cursar uma faculdade. Se era aquele que não merecia ser ouvido, me esforcei para ser aquele que estava sempre certo. Se era aquele que não merecia nem ser visto, me tornei aquele que mesmo sem se esforçar, ganha destaque.



Se sou arrogante, como minha mãe diz que sou? Eu acho que sim. Mas em outro sentido. Já assistiram Dogville? O filme é de um diretor dinamarquês, Lars Von Trier, o mesmo diretor de "Dançando no Escuro". Lançado em 2003, chama atenção pela simplicidade de seus cenários pois foi todo filmado dentro de um galpão na Suécia, com poucas mesas e algumas paredes, e apenas marcações no chão indicando que ali é a casa de tal personagem. Apesar das personagens fazerem constantes referências a paisagem ou ao céu, o fundo é infinito, tendo constantes alterações de luz e cor que indicam mudanças temporais e climáticas. O filme ainda tem um narrador onisciente e é o próprio Lars von Trier quem controla a câmera, garantindo cortes não convencionais e artimanhas do diretor, autor do manifesto Dogma 95, para que o público não se esqueça de que assistem uma peça de ficção, valorizando os atores. O resultado é aberto a opiniões: alguns espectadores saem maravilhados com a sensibilidade do diretor e a atuação brilhante de Nicole Kidman, e outros acham o filme longo e maçante.
A trama acontece numa cidade pequena dos Estados Unidos, no meio do nada, chamada "Dogville", situada no fim de uma estrada que vai até as Montanhas Rochosas, na época da grande depressão americana, e lá Grace (Nicole Kidman) come o pão que o Diabo amassou. Ela chega a cidade dizendo que foge de gangsters, e a princípio os moradores da cidade recusam-se a aceitá-la, até que ela começa a ajudar-lhes nas tarefas cotidianas. Mas mesmo assim sua proteção não está garantida, porque apesar de afirmarem o tempo todo o quanto são generosos, quando descobrem um cartaz dizendo que Grace é procurada pela polícia, às exigências se tornam ainda maiores, e são aceitas silenciosamente.
Um elemento interessante, no entanto, é ainda no começo quando Grace afirma ser arrogante, que foi criada para ser arrogante numa família rica, contudo conforme tudo acontece no filme, ela não demonstra em momento algum arrogância, pelo menos do jeito que a entendemos, muito pelo contrário. Além disso, ela perdoa tudo o que fazem com ela. Exatamente como eu. Todo o mal que os habitantes de Dogville fazem com ela. Exatamente como eu. Porém no final ela explica a própria arrogância.
Arrogante para ela é uma pessoa que perdoa tudo. Ela diz que para uma pessoa perdoar outra é necessário que ela se coloque como alguém superior a outra, só uma pessoa superior pode conceder perdão. Como Deus que pode perdoar os homens por ser superior. Nós, homens, somos todos iguais e se nós perdoamos - esquecemos àqueles males que nos foram feitos - estamos sendo arrogantes. A moral do filme é: Não seja arrogante! Não perdoe!!
Com isso, quando os moradores da cidade finalmente decidem entregá-la aos gangsters, descobre-se somente aí que Grace é a filha de um gangster e fugia do pai que pergunta a filha se ela perdoa os moradores de Dogville, e sua última fala é "Eu não sou arrogante a este ponto". E toda a cidade é massacrada, com excessão de um cachorro. Assistam.
Preciso dizer mais? Não sejam arrogantes, como eu.

23 comentários:

  1. Rapaz!
    A cada dia eu me surpreendo com sua forma de escrever! Vc não sabe o quanto eu te admiro!
    E assim como vc foi o primeiro a fazer a faculdade, mostrou estar certo... mostre tb que é capaz de ser feliz, assim! Não estou dizendo que é fácil, até porque, eu não consegui isto! Porém, não devemos desistir de nossa felicidade jamais!

    Beijo

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  2. é importante ser arrogante e principalmente assistir dogville

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  3. Oi Fóquito!

    Então, prepare-se para um mundo de incertezas e inseguranças!!! ;-)

    Mas a gente gosta,ne?! E tenho certeza que voce se dará bem.. e logo estaremos todos no Olimpo, na forma de phDeuses!!! ehehe

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  4. Dogville mostra claramente que a humanidade não deu certo e q o mal existe em todos!

    é um filme magnifico

    mas é um filme sem esperanças

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  5. Agora você disse tudo! É como numa música do Morrisey cujo nome eu já nem lembro: "você realmente quer fazer parte deles?". Nesse coisa de levar a frente ser gay, muito fica pelo meio do caminho, coisas boas e ruins. E essa coisa de vocêseguir teu próprio destino é o correto. Porque no fim das contas, você se esforça muito para agradar pessoas que não gostam realmente de você. Aí a gente se pergunta: pra quê?

    p.s - Dogville é fueda!!!

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  6. oi raposa


    nossa você escreve divinamente, e justo nesse dia eu estava vendo o "vidro xou" a coisa mais sensata que fiz foi pegar o controle remoto e pimba desliguei a tv o consumo de energia agradece ahha. menino me emocionei com teu texto, muito bom me remeteu a minha infancia não que o que te aconteceu aconteceu comigo , mais sempre temos estorias a lembra e fazer comparações né???? o filme adoro filmes , me deixou curioso vou correr atras para assisitir valeu a dica...

    p.s. estou muito feliz que tenha indo no meu blog.. fico grato apareça mais vezes ok?????
    as fotos não matam so nos tira o ar .............ahahahhaa

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  7. Olá! dando uma passadinha os blogs... ando meio ausente..

    abs

    Greco

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  8. que texto lindo! adorei dogville, mas não gostei muito de manderley, a continuação - era esse o nome? acho que sim.

    beijos!

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  9. PReciso ver Dogville, mas confesso que as 3 horas de duração me deixam com um certo receio...

    No mais, acho que este é um dos posts em que você mais se expôs (dentre os que li). Achei admirável.

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  10. Sabe que já uni "arrogancia" a auto defesa por várias vezes, mas dessa forma exposta por vc e pelo filme é muito interessante: "Arrogante é a pessoa q perdoa tudo"
    Intrigante, valeu a dica do filme.
    Mudei o blog clicka ai em baixo
    O resto acho q vc já sabe.
    Thanks for everthing. Vc é lindo.
    Beijos

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  11. adimiradissimo com o texto..
    e apaixonado por esse filme


    ;o)

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  12. Já tem algum tempo que não passava aqui no seu blog, mas fiquei muito admirado com seu último post... Você tem uma capacidade enorme de transmitir suas idéias... Muito bom o texto... Também me sinto como você muitas vezes.. A forma que as pessoas nos taxam, acabam por fazer-nos criar atitudes. Também me chamam de arrogante, chato, insensivel e tal, mas acho que isso tudo é mais uma auto-defesa.. Gostei de verdade do que você escreveu.
    Ainda não assisti Dogville.. Sempre vi nas prateleiras da locadora, mas nada tinha me feito ter vontade de assistí-lo, mas hoje eu tive esse interesse...
    Se quiser, depois passa no meu blog.. Abração cara..
    Espero ter mais contato com você

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  13. raposão, agora eu sei porque eu me inspirei em você para escrever o meu blog. porque vc manda muuuito bem, abração.

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  14. Tb sou arrogante (na hora certa e na hora que acho certa).

    Porque se a gente nao impina o nariz lá no alto, eles nao vao só montar em cima de vc, eles vao arrancar ele fora e dizer que nao temos o direito de tê-lo!

    Muita das vezes é assim que conseguimos respeito!

    Abraços e Boa semana!

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  15. Putz, pior que eu sou arrogante...

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  16. Gatooooooooooo! Blz? Reinvenção total, novo FOXX... Vc sabe! Beijos!

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  17. Responder a críticas com trabalho! Sempre foi essa a minha principal motivação. E arrogância. (Mais uma vez, tenho que dizer, os teus textos agarram!) Abraço!

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  18. Cara, que post interessante. Vou ser sincero em dizer que não sei até que ponto concordo com você e, no momento, minha cabeça anda tão voada que teria dificuldades de entender uma singela entrevista do Video Show.... Hehehe!

    sò não gostei de já saber o final do filme. Aliás, quem mandou não ter assistido há mais tempo, né?

    Abs.

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  19. Oi!
    Adoro "Dogville"!! E a lição do filme é ótima!!
    Que história,hein??
    Abs!

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  20. dogville é um filme primoroso, fiquei atônito qdo assisti.. é demais..

    querido todas as provações, não aceitações e dificuldade ajudaram a te moldar.. mais forte, e sim, superior a essas baixezas.. não há nada de depreciativo nisso

    beijao

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  21. Devo dizer que, com este post, você ganhou toda minha admiração.

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  22. Adoro Dogville, já o assisti umas quinze vezes, fora algumas cenas que já vi em incontáveis momentos. Nicole está ótima, depois desse filme saí procurando todos os trabalhos dela.

    Eu também não sou tão arrogante, não consigo perdoar facilmente não, até que gostaria, mas nem sempre dá. Por falar nisso, adoro aquela música "A alegria do pecado às vezes toma conta de mim e é tão bom não ser divino, me cobrir de humanidade me fascina e me agita os instintos... Quem se diz muito perfeito na certa encontrou um jeito insoço pra não ser de carne e osso..." Mais ou menos isso, adoro!

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  23. Não vou repetir todos os elogios q os outros já postaram, mas concordo com eles a respeito dos seus textos! É impressionante!
    O mais legal é q cada um q leio, fico mais fã!! Fã não só do blogueiro, mas da pessoa!! Da pessoa q enfrentou coisas q mtos não conseguiriam... ah, sem mta melação!! rs

    Só digo q adorei o post...
    E q vou assistir Dogville!

    rs

    Abço!

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" Gosto de ouvir. Aprendi muita coisa por ouvir cuidadosamente."

Ernest Hemmingway