São
Miguel de Extremoz, que já foi terra de guajiru, aldeia fundada
pelos Soldados de Cristo, era terra de caboclos em torno de uma lagoa
de águas escuras e espessas que, na verdade, são apenas a
continuação do rio chamado de Doce que deságua no rio dos
camarões. É um rio de águas corredias e leito raso, a lagoa, no
entanto, é profunda e de águas paradas, o leito está sempre
recoberto de uma lama escura que atravessa dos dedos dos pés dos
meninos que pulam em suas águas. E são muitos. Inácio era um
deles. Menino alegre e faceiro. Se jogava na água, às vezes sem
roupa, como seus antepassados, sempre que podia. Não era como nós,
bons cristãos, que preferimos manter nossos pudores apenas para nós,
Inácio era descendente daquela gente que já estava aqui antes da
igreja chegar e que não tinha, como dizia o cronista, nem Deus, nem
Lei, nem Rei. Às vezes acho, quando minha fé não me basta, que se
deixássemos estes caboclos voltariam todos a sua vida de antes, com
suas fumaças e maracás. Ele mesmo, Inácio, frequentava a igrejinha
de São Miguel aos domingos, sua mãe o levava todo dia do Senhor,
diziam que era uma senhora de muita fé em São Miguel que ela
chamava todo dia em suas orações, mas ela mesma não deixava de
acender seu cachimbo com fumo e soprar fumaça quando o menino tinha
alguma febre. Foi criado assim. Solto como silvestre que era.
Fumaçado como caboclo que era.
A
aldeia era pequena. Insistiam em chamá-la Guajiru. O padre chamava
São Miguel. O imperador, Extremoz. A igreja cimava tudo, com suas
volutas barrocas feitas na pedra lavrada. Ao redor casas com teto de
palha de carnaúba e paredes de barro sem divisões internas, nem
quarto nem dispensa. Uma sala, com uma fogueira acesa no meio em que
a mulher cozinhava e a fumaça subia. Evitava-se assim o frio da
noite. O chão era batido e pisado, e redes se penduravam nos caibros
que sustentavam o teto até as colunas que erguiam as paredes. Ali,
entre aquelas pobres almas, todos viviam juntos. Família, filhos e
pais, todos aglomerados, com seus saguis ou catetos e quando muito
endinheirados um cachorro ou gato.
A
vida de uma criança como Inácio era simples. Acordava com o pai,
Marcolino, junto com o sol; sua mãe, Jandira, uma cabocla com nome
de abelha, acordava antes, e já tinha feito a tapioca no fogão e a
entregava quente nas mãos do filho pequeno e ele buscava na cesta o
peixe seco para comer. Ela agradecia a São Miguel, eles comiam e o
filho e o pai saíam para a roça. Aos sete anos, logo depois de ser
batizado, Inácio já estava limpando o terreno ou quebrando a
macaxeira ou jogando os pedaços pelo ombro nas covas feitas por seu
pai.
Trabalhavam
até o meio dia na roça. Quando o sol subia, eles voltavam para
casa, para mais tapioca e peixe, mas na volta sempre traziam alguma
mangaba ou umbu. Inácio gostava especialmente dos araçás, mas nem
sempre era época de araçá. A tarde, Inácio ficava em casa com sua
mãe, muito raramente, a contragosto de Jandira, seu pai o levava
para caçar.
- E
o menino não vai aprender não, Jandira?
Gritava
Marcolino.
Ela
deixava, a contragosto, mas deixava. Inácio gostava. Gostava mais de
caçar do que da lida na enxada. Queria aprender a atirar como o pai.
Aquela arma que fazia um barulhão era o que ele achava de mais
interessante em toda a sua vida de caboclo. Mas seu pai raramente
usava. Era uma arma quando eles topassem com um veado ou uma ema,
quem sabe uma suçuarana. Inácio lembrava dele ter usado uma ou duas
vezes em toda sua vida. Inácio mesmo só usou uma vez, quando
apareceu um veado bebendo água do outro lado da lagoa, ele estava
perto, fez a mira e atirou. Errou por muito e o bicho, assustado com
o estampido, fugiu rápido. O normal era achar uma toca de tatu e
enfiar a mão lá dentro e arrancar o bicho pelo rabo. Ou encontrar
uma preguiça-de-chifre escondida embaixo das folhas da imburana.
Quando ele trazia o bicho vivo, pendurado pelo rabo, e entregava a
mãe era uma festa só.
Jandira
cantava muito. Adorava os cânticos da igreja e tinha bom ouvido.
Repetia fácil, mesmo sem saber nenhuma palavra do latim, as canções
que ouvia na missa miguelina. Inácio ouvia a mãe cantar lá de
dentro quando sentava ao pé do fogão com seus brinquedos, enquanto
o pai sentava na porta da casinha que dividiam olhando o movimento.
Não demorou a aprender as cantigas de igreja e adolescente, logo
logo, aprendera também as de, Deus me livre, cabaré.
Virando
rapaz a mãe não teve força para segurar-lhe dentro da igreja, o
pai, Marcolino, não era, como eu disse, flor que perfumasse lar
nenhum. Levou rápido o filho para o primeiro lupanar que encontrou
nestes caminhos deste sertão d'el rey. Foi só conseguir mais umas
patacas da venda de suas macaxeiras que levou o menino. Dizia estar
lhe dando um presente de aniversário! Foi o que dizia para Inácio,
para Jandira as palavras eram mais duras.
-
Tem que levar esse menino sim, Jandira! Homem não pode ficar em casa
aqui cantando não. Tu vai acabar desviando esse menino com essas
cantorias!
Não
sei onde ficava! Nem fica bem um vigário como eu saber onde ficam
estes lugares, mas Inácio foi. Tinha quinze anos, disse-me. E era um
rapaz bonito que chamou atenção das moças. O corpo torneado da
lida e das braçadas na lagoa perto de casa anunciavam um jovem
Adônis. Ele contou assim:
- Marcolino,
seu safado!
Gritou
uma moça de cabelos negros arrumados para cima e rouge na face.
- Olha,
Tereza, quem esse vento sueste trouxe!
Tereza
apareceu. Era uma moça alta, de cabelos loiros, muito bem arrumados
em forma de cachos pesados. Caminhou até Marcolino de forma lenta se
sensual. O farfalhar dos tecidos de suas saias é um som que Inácio
nunca esqueceu. Beijou-lhe o pai na bochecha, junto da barba escura
que ele usava e, olhando-o, perguntou:
- Quem
é o rapagote?
- Meu
rapaz, Tereza.
E
sorriu.
- Mas
olha só. Já está com esse tamanho todo? E vossa senhoria estava
escondido esse rapaz da gente porque hein?
E
riu. Tereza riu alto e estalou os dedos. Uma moça então se
aproximou. Inácio não ouviu a conversa que se deu entre o pai e
Tereza, apenas a moça que se aproximou o puxou pela mão e o levou
por um pequeno corredor. Ele ouvia gemidos vindos de pequenos
cubíclos com cortinas de chita fina que deixava ver quase tudo que
acontecia do outro lado. Ela o empurrou para um dos quartos no meio,
havia uma esteira no chão e um banco na lateral com uma jarra cheia
de água e uma bacia. A moça beijou-lhe e acariciou suas partes
pudendas. Inácio pulou. Nunca fora tocado ali. Ela sorriu e Inácio
reparou que ela não tinha vários dentes. Foi quando ele olhou para
o lado, a cortina não havia sido baixada, e um mulato com o dobro do
tamanho dele estava no cubículo em frente.
A
cortina do outro quarto estava no chão, o mulato estava de costas,
completamente pelado, com os músculos fortes encharcados de suor.
Nunca havia acontecido antes, mas uma excitação intensa tomou o
corpo de Inácio. O jovem caboclo reagiu por instinto e a moça
entendeu que seu toque e seu beijo eram muito bons. Iniciante, ele
não sabia muito o que fazer, mas ela foi paciente e guiou os
movimentos dele, contudo, ela não percebeu que os olhos dele nunca
perderam a visão do mulato na outra sala. Cada movimento daquele
desconhecido do outro lado, cada músculo contraído, cada gota de
suor que deslizava pela sua pele, causava em Inácio uma resposta
poderosa. Em questão de minutos ele explodiu em um prazer nunca
experimentado antes. E só ali ele olhara para a moça que estava com
ele. Devia ser um pouco mais velha que ele, era uma bela mulata, de
ancas fartas e seios pequenos e duros. Chamava-se Rosa Maria.