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domingo, 14 de dezembro de 2014

"Que delicinha!"


Venho caminhando a noite. Voltando de um jantar de trabalho regado a muito vinho do Porto, em que eu não comi nada, mas foram muitas taças de vinho. É uma quarta-feira e observo dois garotos caminhando de encontro a mim. Eu estou pensando que preciso de uma casa maior e mais confortável quando observo os dois por um segundo paralisado no tempo, eu estava em uma esquina, prestes a virar a direita, eles estavam do outro lado da rua, para atravessar para o lugar que eu estava. Não deviam ter mais de 20 anos, usavam camisetas polo e bermudas jeans, calçavam chinelos, pareciam irmãos ou primos, havia uma semelhança. Eram brancos, bonitos, inclusive, cabelos cortados baixinhos, o mesmo e exato corte, um deles falava ao telefone. Mas os vi e simplesmente retornei as minhas preocupações mundanas, e fiz a conversão a direita. Foi quando ouvi:
- Que delicinha!
E virei para trás, o que falava ao telefone não estava mais lá, vi apenas um deles, já saindo do meu campo de visão, escondidos por trás da parede, com um sorriso no rosto. E eu lembrei de Marina Abramovic. A dançarina fez uma performance que dizia para os visitantes que não se moveria por seis horas, não importa o que fizessem com ela. Ao mesmo tempo colocou a disposição, em uma mesa ao seu lado, 72 objetos que poderiam ser usados em seu corpo. Eram flores, poás, facas e até uma arma carregada, entre outras coisas. Os visitantes poderiam usar os objetos como desejassem, não havia limites. Inicialmente os visitantes eram pacíficos e tímidos, mas ao perceberem que ela realmente não reagiria, a agressão surgiu. Suas roupas foram rasgadas, ela foi cortada, enfiaram os espinhos das rosas pelo seu corpo, até a arma foi apontada para sua cabeça (sim, ela estava carregada). Ao fim da performance, Abramovic levantou-se e aí aconteceu o que eu considero mais importante e mais chocante nesta experiência artística (que se chama Rhythm 0): as pessoas que a feriram fugiram dela.
Sempre que se analisa a história do Rhythm 0, se observa a desumanização que a dançarina sofre quando se coloca a mercê dos visitantes, como rapidamente as pessoas se tornam sádicas infligindo-lhe dor, eu nunca observei por este ângulo. Eu noto é como as pessoas são covardes porque só demonstram seu sadismo quando o outro não pode defender-se. No instante que Abramovic levanta-se, aqueles que decidiram expressar-se, através do corpo dela, com violência fogem apavorados, pois temem serem responsabilizados por seus atos. É, pelo menos aqui em Natal, como estes garotinhos agem. Estas piadinhas são comuns e elas só acontecem nestas situações de que o autor se vê protegido de qualquer tipo de enfrentamento comigo e, por causa dessa impossibilidade de enfrentamento, eu muitas vezes fico em dúvida: eles são homofóbicos ou é uma cantada? Analisemos. 
Alguém pode parar agora e dizer: "Mas eles não foram homofóbicos, eles fizeram um elogio!". Será? Um elogio é feito diante de alguém, para que alguém escute, aquela foi uma cantadinha machista, como quando gritam gostosa na rua para uma mulher. O objetivo de gritar "gostosa" para uma mulher não é elogiá-la, mas reforçar o papel de homem-pegador e de mulher-objeto-do-desejo dentro das relações sociais. Quando o homem grita, sempre ao lado de seus confrades, ele reforça seu papel de macho-alfa no meio do seu bando, garantindo assim privilégios diante dos amigos, e também reforça entre os membros femininos do grupo que seu lugar é o de objeto a ser admirado por aqueles que detém o poder. Admirado e devorado (não é a toa que a expressão é "gostosa" e não "linda"). O mesmo acontece aí. Eles gritam para mim "delicinha", que não é diferente de "gostosa", e ainda ocorre na feliz coincidência que o gênero da palavra não deixa de me colocar no papel de mulher-objeto e deles como homens-dominantes. Disfarçado de elogio, a dominação ocorre.
Mas e se foi um elogio mesmo? Por que, diabos!, alguém faz um elogio a outro e não fica para receber os louros? Que espécie de fetiche é esse em que a pessoa sai pelas ruas a noite chamando as outras pessoas que encontra na rua de deliciosas e se esconde depois? Qual a utilidade de uma cantada que termina sem, no mínimo, o telefone do seu objeto de desejo? Qual o objetivo, pergunto curioso? Até porque eu não sei como reagir. Meu impulso foi responder:
- Vocês dois também são deliciosos!
Eu bem que achei naquele segundo que os observei. Mas minha prudência me fez calar. Porque se eles estão sendo homofóbicos, responder com o mesmo elogio seria colocá-los na posição de mulher-objeto no qual eles haviam me posto antes. Esta é a maior dificuldade que os homens héteros tem ao se verem assediados por um homem gay, eles de repente se vêem no lugar de objeto em que colocam as mulheres, no lugar de coisa, de criatura sem autonomia, de ser inferior. E aí eles poderiam se irritar e eu apanhar ali... quer dizer... eles dois apanharem muito de mim porque, gato, eu não apanho de homem nenhum nessa vida. #ProntoFalei. Não quero ter sangue de menininhos héteros na minha mão não. Ou eu devia mesmo ter respondido? 






19 comentários:

  1. Delíciaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa :D

    eeheheheheh

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  2. Oi, Fox.
    Eu acho possíveis todas as possibilidades citadas no texto. São até corriqueiras em nossa realidade. Diria que o somatório de percepções, como o sexto sentido, voz interior, energia do ambiente e outras formas de filtrar as situações cotidianas que envolvem pessoas, é muito importante nesse contexto. O nosso estado de espírito também.
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    1. er... eu não entendi, o que você acha que aconteceu então?
      ou você acha que precisava estar lá e presenciar a cena para ter uma opinião?

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    2. Eu acho que você usou um daqueles filtros perceptivos que mencionei. Acredito que todos nós temos isso, algumas pessoas chamam de voz interior, sexto sentido, etc, mas nem todos valorizam. Por outro lado, se o clima fosse bom, saudável, você teria outra leitura. Talvez estivesse narrando outro desfecho aqui no blog. Sacou?

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    3. Sim sim. Então no caso pra vc foi uma cantada, mas eu interpretei de forma diferente porque eu tava no meio da rua e desconfiei. É isso?

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  3. para mim estes tipos de cantadas são ridículas ... é mesmo uma postura de "machos" covardes e q precisam se autoafirmarem ... fez bem em nem dar resposta ...

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    1. eu também acho que fiz bem e não dar resposta, era a saída mais digna mesmo, não é?

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  4. Eu - como egocêntrico crônico - sempre tenho certeza de que é cantada! Hahahaha! Mas na dúvida melhor deixar no vácuo - como muito bem fizestes!!!
    E onde tu andava, demonho?!? Faz eras que não aparece "lá em casa"!!!

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    1. Oi Fred.
      pra vc com certeza seria cantada, ora.
      Eu tenho passado por muita cooaa e trabalhado muito, Fred. Chego em casa pra dormir e quando acordo já é pra sair pro trabalho de novo. Mas isto não é desculpa. Tentarei ler os blogs sim, principalmente o seu, pode deixar

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  5. Acho que você está certíssimo com essa relação homem-mulher. Eu não sei mais identificar uma cantada, e as vezes fico imaginando porque alguns caras me encaram ou olham demais pra mim.

    Eu não ia gostar que alguém gritasse isso pra mim na rua, ou na calçada. Provavelmente eu não ouviria mesmo, muito distraído na rua.

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    1. Ah eu sou bastante atento. Sempre. Mas a interpretação dos fatos já é diferente. Ai é que tenho problemas.

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  6. Oi Foxx
    Por isso que trago minhas fraquezas trancadas a sete chaves, para que os sódicos não se aproveitem delas.
    Abraço

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    1. Ah, eu faço o contrário. Exponho minhas fraquezas para que oa sórdidos não tenham poder sobre mim.

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  7. Provavelmente cantada. Já dei umas cantadas de pedreiro e nem fiquei pra ver o resultado - vai que o cara é hétero e não leva numa boa? Vai que o cara é gay e acha que a gente tem que ir transar? Às vezes uma cantada é apenas um elogio :)

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    1. Neste caso, Paco, fui muito mal educado em não ter dito obrigado não é?

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  8. Migo, eles eram novinhos. Se fosse comigo, eu viraria e olharia no rosto. Se fosse interessante, eu sorriria e diria "valeu, você também é". Se não fosse, eu continuaria meu caminho.
    Bom, com o tempo eles elaboram melhor as cantadas, afinal, não vejo um homofóbico dizendo isso, você vê?

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" Gosto de ouvir. Aprendi muita coisa por ouvir cuidadosamente."

Ernest Hemmingway