Nos idos dos anos 2000, eu começava nos meus primeiros exercícios de pesquisa histórica, com um trabalhinho de umas trinta páginas, era um artigo sobre a moralidade na Grécia Antiga, através dos mitos gregos. Eu tinha meus nada saudosos dezoito anos e diálogava com importantes historiadores franceses no texto e o apresentei para o professor de História Antiga, chefe do laboratório de arqueologia da UFRN, à época.
Ele leu e marcou um conversa comigo, numa tarde, no laboratório, sentamos naquelas bancadas cercados de material lítico como pontas de flecha, raspadores e machadinhas, cerâmica indígena pré-histórica e histórica e louça portuguesa e inglesa do século XVII e XVIII. Alguns alunos limpavam pedras recém trazidas de uma escavação e as tombavam quando ele começou a conversa elogiando meu conhecimento dos mitos gregos e, para um calouro, afirmou:
- Você sabe que já tem uma monografia pronta para a conclusão do seu curso, não sabe?
Eu não sabia. Ele havia riscado todo o texto que eu entreguei para ele. Setas, comentários, perguntas pintaram de azul todas as páginas, ele começou com um sorriso no rosto, citando um trecho do meu texto, que terminava afirmando que os gregos eram antropocêntricos.
- São mesmo? Quem disse?
- Os livros...
- Não confie em afirmações como essas, Foxx, elas são simples demais e essa simplicidade sempre esconde motivos escusos.
Eu me assustei, ele continuou suas críticas até que, um dos pontos era as definições morais do relacionamento entre homens no mundo grego, e ele parou e me olhando nos olhos, perguntou:
- Por quê, quando você fala do relacionamento entre homens, em nenhum momento você usa a palavra amor? Não existe amor entre homens ou ele é diferente do que acontece entre homens e mulheres?
Aquela pergunta me pegou de surpresa e me fez ver um preconceito que na época eu não sabia o nome. No mundo homofóbico em que eu fora criado, em que bichinhas servem para aliviar o desejo dos grandes machos heterossexuais, mas nunca são objetos de amor; na minha inocência adolescente que não sabia que o mundo é muito maior do que minha experiência na periferia de Natal, eu não sabia que estava transportando para um período histórico a homofobia no qual havia sido educado.
Eu não sabia o que responder para o professor. E ele começou um discurso sobre o amor e preconceito e sobre o ofício do historiador e nosso pecado capital, o anacronismo. Eu nem tentei balbuciar uma pergunta. Eu estava chocado com minha impossibilidade de pensar que dois homens poderiam se amar. Estava assustado com meu preconceito. Mas quando nossa conversa terminou e ele pediu algumas alterações no trabalho.
- Você tem condições de focar nos mitos de apenas uma cidade, por exemplo, Tebas?
Eu aceitei o desafio, mas sai do laboratório disposto a vencer outro trabalho hercúleo: decidi dali em diante, agora que estava ciente de sua existência, extirpar todo o meu preconceito que existia dentro de mim.
interessantíssima esta sua experiência ... de alguma forma eu vivenciei isto qdo conheci o Elian ... não imaginava ainda a possibilidade de amor entre dois homens ...
ResponderExcluirPois é, Paulo, eu não sabia aquela altura nem que homens namoravam também, que podiam ser carinhosos uns com os outros. Eu só sabia que o sexo era possível, foi muito chocante ouvir aquilo de um professor, mas também que bom que ele jogou isso na minha cara, não é? Que bom que ele também não era homofóbico.
ExcluirE ainda tem gente que vai ler isso e não vai entender do que você está falando. Quem nunca conheceu o amor pessoalmente tem dificuldade para percebê-lo no mundo!!!
ResponderExcluirÉ, nessa época eu, com certeza, nunca havia experienciado o amor mesmo, apesar de ser muito experiente em relação ao sexo. Infelizmente, pouca coisa mudou desde minha adolescência neste departamento...
ExcluirNão lembro de tudo que já escrevi no eu blog, mas acho que comentei algo uma vez que tem a ver com isso que você mencionou. Meus pais e avós tinham um orgulho imenso de terem pessoas inteligentes na família, assim, embora tivesse uma criação mais conservadora, me disponibilizaram livros que falavam muito sobre a cultura grega e enciclopédias sobre sexo. E quando li poemas e estudos sobre Safo e algumas narrativas de Virgílio, eu já imaginava que pessoas do mesmo sexo podiam se amar intensamente, no sentido romântico da coisa mesmo. Meus primeiros contatos culturais já vieram com esse pacote. Assim como muitos, tive problemas com minha homofobia interna, mas percebo, lendo o que você postou, que ao menos esse foi um detalhe pelo qual não precisei passar... Nunca achei que dois homens não pudessem se amar. E acho que comecei a sonhar com um homem pra ser meu "marido" desde os 14 anos... hahaha
ResponderExcluirPois é, Vilser, até os 21 eu não conhecia o amor, somente através da tv e de livros que eu ouvia falar dele, e tinha certeza que ele só existia entre um casal heterossexual, era uma construção específica para homens e mulheres. Eu achava que para gays existia apenas o sexo sem carinho ou mesmo beijos na boca. De fato, meu primeiro beijo foi aos 21 anos enquanto eu fazia sexo desde os 13, é uma distância de 8 anos, sem nenhuma manifestação real de carinho, somente sexo. Repito, pouco mudou desde 20 anos atrás...
ExcluirExtirpar o preconceito que habita dentro da gente... essa é mesmo uma tarefa Hercúlea (com H maiúsculo mesmo...)!!!
ResponderExcluirMeu caro Foxx, quanto mais te conheço através do que escreves, mais cresce minha admiração pelo bloguer que és, que um dia aportou no meu blog com um belo e instigante comentário...li tua série sobre o homossexualismo nas novelas - totalmente genial -, e agora lendo este texto, mais uma vez tiro meu chapéu.Como é verdadeiro a forma como nos educam, como tentam nos moldar eu tenho uma teoria (sic) que as mulheres são a grande culpada do machismo, afinal são elas que educam os homens nos primeiros tempos, tem maior poder de influência que os pasi...mas é só uma teoria(acho que é teoria rs), enfim...Tenho a maior admiração pelos clássicos gregos ou não, é uma matéria muito rica, até para entender-mos o que nos acontece hoje...mais ou menos foi o que captei deste teu post. Tem tanta coisa errada, meu caro Foxx, mas não está tudo perdido, por mais homofícos que existam, a inteligência é mais, porque nos buscamos e tenmos muito mais chances de nos encontrar-mos. Assim como meu precioso amigo Fred, também achei uma tarefa Hérculea o que fazes. Parabéns.
ResponderExcluirAnacronismo! ontem mesmo, no meu curso de Historia, O Geraldo Marquese falou exatamente disto, como na hisotriografia corremos o risco de transportar o que estamso estudando para nossa realidade! Otimo texto! parabens!
ResponderExcluirEu ainda presto muita atenção em algumas atitudes que tomo, coisas que repito e pensamentos prontos, pq é ai que ainda se escondem alguns dos meus preconceitos. Obrigado por dividir isso conosco! Abraço.
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