O vizinho dele encontrou a porta aberta do apartamento e estranhou. Totalmente aberta. Do corredor, era possível ver sangue pelo apartamento, que chegava até a esquadria e seguia pelo corredor a fora. Só neste momento o vizinho também reparou na porta, suja de sangue, aquele sangue escuro, coagulado, como se uma mão ensanguentada a tivesse aberto. O vizinho não resistiu a curiosidade e avançou porta a dentro, mas quando ele contou essa estória depois afirmou que entrou porque o vizinho podia estar precisando de ajuda. Ele tentou chamá-lo, mas percebeu ali que apesar dele morar no prédio há anos, não sabia o nome do vizinho de porta. Com poucos passos, olhou em volta, e viu o apartamento revirado, ele pensou por um instante que pudesse ter sido alguma espécie de luta, mas um segundo olhar o fizera perceber que só podia ser um assalto. Ele sacou seu celular então, e ligou para 190, pretendia relatar tudo, e tinha assistido bastante CSI para saber, àquele ponto, que não podia tocar em nada. Mas seus olhos, estes, vasculhavam tudo. Havia muito sangue pelo chão, a tv não estava mais no seu lugar. As gavetas estavam fora do armário, os livros da estante haviam sido derrubados. O telefone da polícia atendeu. "Meu vizinho foi assaltado, a casa dele 'tá revirada...", foi quando ele chegou ao fim do cômodo, e pelo corredor, ao fundo, viu o corpo do vizinho, caído na cama, e ele não pode conter a exclamação, apesar de não ser nada religioso, "Meu Deus! O cara 'tá morto!".
A careca do vizinho reluzia, apesar da pele macenta de quem morrera já há horas. Sua barba bem cuidada continuava intocada e sua boca entreaberta em um último suspiro, sua bochecha estava espremida no travesseiro de fronha branca. A faca com a qual ele fora apunhalado ainda estava ao lado do corpo, já seu peito era uma profusão de pele, sangue coagulado, pêlos arrancados e pedaços de carne que o vizinho só conseguia imaginar que eram do coração dele, mas provavelmente não eram. Havia uma garrafa de vinho derramada no tapete, uma mancha que nunca sairia, e duas taças, uma quebrada no chão, outra sobre o criado-mudo. "Ele tinha alguma companhia aqui", concluiu o vizinho para a telefonista da polícia que perguntava-lhe o endereço, foi quando pisou em algo e levantou o sapato de couro que sempre usava para trabalhar e encontrou uma carteira aberta, jogada, ele se abaixou num ímpeto de pega-la, mas deteve-se no último segundo lembrando que suas digitais seriam encontradas na cena do crime, mas ele pode ver que não havia nenhum dinheiro por ali. Quando ele se ergueu, seus olhos encontraram-se com o do morto. O vizinho teve um arrepio instantâneo quando se deparou com aqueles olhos sem alma.
Mas os olhos mortos dele lembraram ao vizinho que eles tinham subido o elevador ontem juntos. O vizinho e o agora morto que estava acompanhado de um jovem muito forte e alto. A namorada do vizinho até comentou que aquele cara só poderia ser garoto de programa para "andar com aquela bicha velha". E era mesmo. O vizinho tentou lembrar do rosto do garoto de programa, mas não conseguiu, no entanto conseguiu imaginar que o jovem deve ter tentado assaltar aquela bicha e esta tentou se defender, mas o outro maior e mais forte, a dominou e a matou. O vizinho então retornou, com sua curiosidade satisfeita, até a porta e pegou o corredor, esperou lá pela polícia e quando o primeiro policial chegou e perguntou-lhe o que aconteceu, o vizinho respondeu: "Ah, essa bicha velha aí que vivia trazendo garotos de programa p'ra casa. Teve o que bem mereceu por se envolver com esse tipo de gente, mas veja, senhor policial, o risco que a gente sofre convivendo com esse tipo de pessoa... não é que eu tenha preconceito não, sabe?, mas tem que ser eles na deles e a gente na nossa". E o policial concordou. E o assassino dele nunca foi encontrado.
(imagino que vou morrer exatamente assim)