Google+ Estórias Do Mundo: As Almas de São Bartolomeu - Capítulo III

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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

As Almas de São Bartolomeu - Capítulo III




Alexandre nascera às margens do rio Grande dos camarões. Banhara-se primeiramente nas águas lamacentas daquele rio cercado por mangues. Foi com a água de lá que o sangue de sua mãe foi lavado de seu rosto. Aquela negra, que nascera livre e com o nome de Bárbara, em homenagem a santa, trabalhou até o último instante que o menino esperou para nascer. Vendia quitutes pelas ruas da cidade desde moça. Vendia raivas, sequilhos e grude gritando a plenos pulmões. Bárbara nascera xaria, morava acima da ponte que permitia passagem no pântano ribeirense, mas descia com seu tabuleiro a ladeira todos os dias para vender seus quitutes para os canguleiros. Alexandre nasceu em um dia desses de trabalho. Bárbara desceu a ladeira e atravessara a ponte carregando seu tabuleiro na cabeça. Sentiu a primeira pontada da dor no parto quando pisou na ponte de madeira, mas continuou seu trabalho, era quase meio dia quando as dores não deixaram mais ela andar. Bárbara conseguiu encontrar apenas uma árvore que margeava o rio para encostar-se. Colocou o tabuleiro no chão e sem emitir um pio colocou Alexandre no mundo. Ela lavou o menino ali no rio mesmo, que não reclamou da água fria, e subiu mancando com o tabuleiro na cabeça e o bebê nos braços até a igreja de Nossa Senhora do Rosário que vigiava tudo lá de cima da colina.
Ela entrou aqui com o menino pingando ainda. Assustei-me com os cabelos desgrenhados e o sangue que ainda escorria pelas pernas da negra. Ela me olhou com olhos cansados e falou:
- Batizei ele de Alexandre, lá no rio.
Eu peguei o menino gorducho que ela trazia. Devo ter sido o primeiro a segurar Alexandre depois da mãe. Ele dormia o sono dos inocentes e eu enrolei ele num pedaço de algodão cru que havia na sacristia.
- Leva teu menino para casa, Bárbara. E descansa essa semana, mulher de Deus!
Bárbara riu.
- Se eu descanso, padre, nem eu, nem o menino temos o que comer naquela casa!
Bárbara arrumou o tabuleiro na cabeça e na porta da igreja o menino abriu o berreiro. Sem cerimônia a negra colocou o seio para fora e ofereceu ao menino que mamou com fervor.
- Sua benção?
Ainda pediu. Enquanto usava o pano que eu cobrira a nudez do menino para esconder-lhe ( o seio) do sol.
- Que Deus te abençoe e a teu menino, Bárbara.
Ela ascentiu e saiu rebolando. Desceu a Cidade Alta pela rua Grande, cruzando a praça e passando em frente ao Senado da Câmara e a Cadeia. Ainda ouviu uns mexericos dos presos que a avistaram passar pelas grades do porão.
- Nasceu o menino, Bárbara? Então já estás pronta para outro!
Gritou um.
Ela ignorou. E só tirou o menino do seio quando chegaram ao cruzeiro da bica. Lavou-se lá enquanto o menino descansava na areia. Limpa. Amarrou o menino no seio como fazem as caboclas, voltou o tabuleiro para a cabeça e Alexandre foi ninado ao som de seus gritos de vendedora:
- Vendo raivas! Vendo grude! Raivas e Grude!
Alexandre cresceu na barra da saia da mãe, seguindo-a para todos os lugares. Às vezes correndo na sua frente e gritando o que a mãe vendia em seu lugar. Mais tarde do seu lado, ajudando-a a caminhar. Não era um menino de muitos folguedos! Trabalhava com a mãe, vendendo os doces, trabalho que assumiu quando ficou adolescente enquanto a mãe ficava em casa preparando novos tabuleiros e frequentava a igreja todos os domingos para a missa e todas as quartas para aprender a ler. Ensinei-o pessoalmente. De todos os alunos que tive, fora Alexandre o mais interessado em aprender as letras. Aos dez, já era o melhor da classe, tanto para ler, como para as contas. Foi nesta idade que assumiu o trabalho da mãe e trazia para casa o sustento.
Cresceu bonito e forte, caminhando pelos charcos da Ribeira, pelas dunas do Areal até a Limpa, chegava a vender os doces de sua mãe para os soldados aquartelados no Forte dos Reis, vizinhava os sítios e as casas de veraneio na Cidade Nova, percorria as poucas casas do Barro Vermelho e às vezes chegava a Lagoa Seca. Muito raramente, quando decidia isso, começava sempre por lá, aparecia para vender raiva para os filhos dos pescadores em Areia Preta.
Adolescente, frequentava com amigos as feiras do Passo. Suas bodegas baratas que vendiam cachaça dos engenhos da região e os bailes cheios de negras e mulatas, como ele, além de caboclos e caboclas perfumadas como flor de juá. O Passo era o divertimento destes jovens pobres e de pouca fibra moral. Eu ralhava com ele todas as vezes que me confessava que tinha ido. E eu e o vigário da cidade reclamávamos com o presidente sempre que nos encontrávamos da libertinagem que acontecia por ali, mas ele fazia ouvidos moucos. Os traços delicados do rosto de Alexandre e a beleza de príncipe africano, ambos herança de sua mãe, faziam de Alexandre um par cobiçado no Passo, naquelas bailes iluminados a luz de lampião. Mas Alexandre era um moço temente a Deus! Não se engraçava com as raparigas, preferia a companhia de seus amigos, os verdadeiros culpados de sua presença lá.

Em outubro, mês da festa do Rosário, Alexandre sempre estava na igreja. Ajudava desde os preparativos, como caiar as paredes ou limpar o terreiro, lavar a igreja ou consertar o telhado. Seus músculos poderosos eram uma ajuda imprescindível, mesmo com a ajuda da irmandade. Participara da festa a primeira vez ainda menino e não perdera uma ano desde então. Fui eu que abençoei quando, em um ano, ele apareceu-me com uma imagem mal feita de Nossa Senhora, esculpida em madeira de goiabeira. Ele amarrou-a no pescoço com uma corda de algodão assim que dei minha benção, não sem antes beijar com fervor. Saiu de lá com uma felicidade no olhar que eu nunca tinha visto antes. Era um tesouro para ele. Único como se fosse feito do metal mais precioso de todos!

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" Gosto de ouvir. Aprendi muita coisa por ouvir cuidadosamente."

Ernest Hemmingway