Estava lendo Masculinidades, o livro organizado por Mônica Schpun, e um dos textos escritos pela antropóloga paulista, professora da UnB, Lia Machado, Masculinidades e violências: gênero e mal-estar na sociedade contemporânea, me fez pensar. O texto fala sobre estupros e violência doméstica através de entrevistas com os próprios estupradores e os agressores, eles explicam porque cometeram tais atos e ela explica o raciocínio machista que faz com que estes homens pensem que não cometeram crime nenhum pois, segundo eles, toda mulher estuprada queria fazer sexo e toda mulher agredida precisava aprender uma lição. Lia, se ela me permite a intimidade de chamá-la pelo primeiro nome, é adepta (como eu) da corrente histórico-sociológica que admite que o gênero são construções simbólicas que podem ser datadas no tempo, no espaço e, sobretudo, nas culturas. Ela chama isto de "construtivismo de gênero", e para citá-la (que faz bem): "os gêneros são construídos cultural e historicamente, podendo, assim, variar em número, em identidades e diferenças, ou até mesmo desaparecerem". Como eu já repeti aqui várias vezes. Homens e mulheres, masculino e feminino não são categorias naturais, elas são construções históricas que advém da revolução burguesa do século XIX e início do XX, isto é, esta coisa que nós consideramos natural foi inventada há mais ou menos 150 anos, seu vaso sanitário, aquele que você usa no banheiro, é mais natural já que foi inventado há pelo menos 3 mil anos atrás.
Falando com os estupradores, a lógica de raciocínio destes homens me fez lembrar daquela que coloca os gays ativos numa posição superior aos gays passivos (inclusive de agora em diante eu irei me referir a este tipo de preconceito como "a lógica do estuprador", vocês também estão livres para usarem minha nova expressão). No imaginário do erotismo ocidental, como sabemos, o lugar do masculino na relação é pensando como aquele que se apodera quando penetra, este é o sujeito da relação sexual e, portanto, ATIVO; enquanto aquele ou aquela que é penetrado/a é identificado como um objeto do prazer do primeiro, um PASSIVO. É importante perceber que o sujeito ativo da relação sexual é o único que cabe ter prazer, mulheres e homens que se colocam numa relação passivamente não podem sentir prazer porque objetos não sentem prazer. Quando, e vemos isto sobremaneira com relação a mulheres, este objeto sexual exige seu próprio prazer, ele é combatido porque não cabe ao feminino gozar.
É sintomático as palavras que nós escolhemos para separar nossas preferências sexuais. Em inglês são usados com frequência os termos top (de cima) e bottom (de baixo), com uma clara referência as posições na cama, o mesmo se dá em finlandês (päällä e alla), mas os termos pitcher (pegador) e catcher (pegado) também existem; como em português, no francês, alemão, turco, italiano, servo-croata, polônes e russo, os ativos e passivos reinam; também matendo o mesmo sentido de aquele que penetra sendo o que tem o controle da ação: em grego, energeticos (o que age) e patheticos (o que recebe a ação) e em chinês, gong (o que ataca) e shou (o que se submete). Como exceções, porque toda regra tem a sua, o japonês faz metáforas, tachi (longa espada) e neko (carrinho de mão); o árabe compara a correntes elétricas, mojib (positivo) e salib (negativo), e que fique claro que isto não é um julgamento moral, são as mesmas palavras usadas para distinguir os polos de uma pilha, por exemplo, e o espanhol que apesar de também conhecer o activo e pasivo, usa com bastante frequência soplanuca (sopra nuca) e muerdealmohadas (morde fronha/almofada).
Não é interessante de como estamos inundados por este machismo e nem nos damos conta dele? Nós mesmos que somos gays escolhemos as palavras para nos definir e caímos no esquema que divide nossa sociedade a partir da dicotomia masculino e feminino. Nós criamos um homem, o ativo, e uma mulher, o passivo, e esperamos de cada um deles comportamentos masculinos e femininos. Quer exemplos? Todos se surpreendem ao encontrar uma drag queen ativa, todos acreditam que porque tal menino é mais delicado e efeminado ele necessariamente é passivo, todos aguardam que porque aquele cara não tem trejeitos ele vai ser o ativaço na cama. Nós que poderíamos romper com tudo isso, que foi nos dado por Deus o dom de superar todas estas questões machistas na sociedade e viver relacionamentos realmente livres de padrões impostos socialmente, acabamos por reproduzir o sistema heterossexual no seio de nossas relações.
Lia Machado conclui sua fala com os estupradores assim: "O ato do estupro parece sintetizar a confusão entre a ideia de masculino como parecendo advir do único corpo sexuado que se apodera do corpo do outro, parecendo ter o falo, isto é, a potência e a força, e a ideia de masculino como parecendo ser a lei, já que neste ato sexual suprime-se a mulher três vezes: enquanto corpo sexuado que pode se apoderar de outro corpo, enquanto sujeito desejante e enquanto sujeito social que participa da confecção da lei". Extrapolo facilmente isto para o mundo gay. Considerar que o ATIVO tem alguma situação social superior a sua contraparte, considerar que a este cabe potência e força, repetir para ele e exigir dele os modelos de conduta do homem heterossexual é considerar que o homem gay PASSIVO: 1) não tem o poder de dominar um outro homem, e o que quero dizer com isso é que ele não tem um namorado, o marido não é dele, ele não tem nada, ele pertence a outra pessoa, vive para a outra pessoa, depende do outro para ter sua própria existência; 2) não é um ser sexuado, isto é, ele não tem desejo, nem prazer sexual, ele apenas serve ao seu homem como objeto para dar-lhe prazer, um problema grande também sobre isso é a fantasia sobre o pênis e o orgasmo masculino, a questão de acreditar-se que o único tipo de prazer sexual que você pode ter é se houver ejaculação, isto é, repetir o ultrapassado modelo heteronormativo (a Sandy já disse, é possível ter prazer no sexo anal); e, 3) por fim, o gay passivo não é um sujeito social, estes sujeitos não têm o direito de existir, ele deve ser apagado da nossa sociedade o máximo possível inclusive naquilo que nós julgamos como denunciador de passividade, no caso, ser efeminado, em outras palavras, tudo bem você ser gay, tudo bem você adorar dar o cu, mas ninguém precisa saber.
Os homens gays repetem lógicas doentias quando, como eu disse, Deus nos deu a chance de vivermos livres delas e de mostrarmos ao mundo o quanto podemos ser felizes se nos libertarmos das imposições que a sociedade criou séculos atrás e disfarçou de natureza para nos ludibriar. Este é nosso papel na sociedade, afinal de contas: quebrar paradigmas! A família não é somente homem e mulher, um relacionamento não é um homem controlando e uma mulher obedecendo, um filho não é somente uma criatura com seus próprios genes e, às vezes, nem da própria espécie, roupa masculina não é só bermuda cargo, camiseta e tênis esportivo, existimos desde sempre mostrando que o mundo está repleto de possibilidades e, no último século, que mudar não faz mal, por isso não podemos reproduzir os erros deles. Nós somos melhores, não somos?
Adorei o texto, mas o pior e falo pelo o conhecimento que tenho em Portugal
ResponderExcluirComo há mais passivos, estes aceitam tudo de um activo, para não perderem a queca...
Pior! É que são os passivos que falam mal dos passivos
Abraço
Como são as mulheres que falam mal das mulheres, Francisco. Quem mais repete o machismo, quem mais o propaga, são as mulheres porque é a vítima que precisa considerar aquilo natural antes do algoz senão a vítima reage, são os passivos que mais repetem o preconceito, que cobram dos ativos o comportamento heteronormativo, que exigem "um homem", os ativos acabam por adotar o modelo senão eles não pegam ninguém né?
ExcluirGente, que texto maravilhoso. Eu fiquei alguns minutos pensando aqui qual seria uma maneira sem sexismo e machismo pra chamar ativos e passivos.
ResponderExcluirAlguma ideia?
eu gosto do Top e Bottom dos americanos, por causa da referência a posição na cama mesmo, não é sexista pra dizer a verdade, mas podemos também pegar o nosso ativo e passivo e desconstruí-los como já fizemos com as palavras bicha e viado e dar-lhe outros valores, afinal, cabe somente a nós o significado de nossas palavras.
ExcluirPS: E como fazer isso? Toda mudança começa conosco. Se você, Antônio, não utilizar Ativo e Passivo com um sentido de valor, já é menos um viado nesta terra deixando de fazer isso. O que quero dizer é que cada um deve mudar a si mesmo, mudando os sentidos que nós mesmos damos as palavras, logo, todo o grupo terá sido alterado.
ExcluirNão acho que somos melhores. O preconceito continua firme e forte em vários aspectos da cultura humana: sexo, religião, política, futebol, o que seja. Não gostamos de quem é diferente e não gostamos de quem, sendo igual a nós, possa atrair qualquer comentário que nos seja estendido por proximidade. Se nem quem sofre preconceito é inerentemente dado a não pré-conceituar os outros (seja pelo mesmo "assunto", seja por outro - ex. negros que detestam viados), que dirá quem não sofre...
ResponderExcluirAh, Edu, eu sou melhor sim, e acho que você também é. Mas o bom de ser melhor é que isso não é uma coisa exclusiva nossa, ela contamina os outros. Vamos deixar que todos se tornem melhores a partir de nossa influência benéfica!
ExcluirFalando enquanto versátil - nem vejo estes assuntos como taboo - acho que se prendem muito aos papeis para tentarem criar um equivalente ao papel "normal" de homem e mulher.
ResponderExcluirHá muitos que se recusam a ser o passivo e encaram isso como um ataque á própria masculinidade, porque é muito mais macho se comer, do que se for comido.
Não acho que o passivo seja encarado como tão acessório como você descreve Acho que é visto como mais promiscuo que o ativo, porque tem prazer com o sexo e não se excusa de o procurar.
Como se ser passivo e querer sexo fosse de alguma forma mais errado, porque andam comendo qualquer um - o que é curiosamente paralelo à forma como se encara a mulher que procura vários parceiros como promiscua, porque a sociedade acha que ela deveria sentar no banquinho e esperar pra ser conquistada - para satisfazer o impulso sexual.
No mundo gay infelizmente ainda se prende muito a preferencia sexual - e posição adotada é preferencia sexual, ou opção sexual, nem há volta a dar - à personalidade ou ao papel de género, como você aliás refere. Eu já passei por isso, tendo em conta que não sou propriamente muito másculo, então volta e meia algum cara com quem eu esteja se surpreende de eu ter pegada.
Li há muito tempo, uma frase que diz "nesse mundo, tudo roda em redor do sexo, menos o sexo, esse se resume a controle" (ou por estas linhas, não me lembro da citação no literal) e acho que vai por aí.
(Já agora, gostei da foto de perfil xD)
oi Miguel, mas isto que vc fala do passivo associado a promiscuidade nasce no que eu estou falando. O passivo como é apenas objeto de prazer, acessório, ele não tem direito de ser promíscuo, de procurar sexo, ele não tem esse direito, como a mulher também não tem, a eles cabe somente sentar e ficar esperando um macho ativo que vai chegar e convencê-los, se qualquer um dos dois, tanto o passivo quanto a mulher demonstram desejo são criticados.
ExcluirEu conheço a citação que vc fez, acho que é do Foucault, História da Sexualidade, se não me falha a memória. E é verdade. O sexo está imbuído de relações de poder que colocam o homem heterossexual no topo, no degrau abaixo está o homem gay e ativo que consegue passar-se por heterossexual, e aí está o problema porque nós, gays, reforçamos esta hierarquia, quando podemos e devemos simplesmente ignorá-la. Permitir que ela controle nossa vida é burrice.
(obrigado pelo elogio, sou eu na foto do perfil sim, caso tenha ficado em dúvida =D)
Não é burrice, é "ovelhismo"em que o rebanho segue todo pelo mesmo lado. Quando você pensa fora dessa caixinha é meio olhado com estranheza. Já me aconteceu diversas vezes.
ExcluirVou começar a te chamar Silver Foxx ahahah :P
Excelente definição, Miguel, é exatamente isso mesmo!
ExcluirE fique a vontade, querido.
=)
"não podemos reproduzir os erros deles." Verdade!!!
ResponderExcluir"Nós somos melhores, não somos?" Acho q não somos melhores. Somos os mesmos ... infelizmente ...
Beijão
Bem, eu sou melhor, Paulo, e tenho esperança que muitos dos leitores do Estórias do Mundo também sejam, mas precisamos agir, influenciar os outros para serem como nós. Não adianta nada ser melhor e ficar calado vendo essas coisas acontecerem. Já passamos da hora de reagirmos. Já passou da hora da mudança.
ExcluirAcredito que somos melhores, mas na maioria da vezes, nos acomodamos com a forma que as coisas são postas.
ResponderExcluirAbraço
Concordo plenamente, Elian.
ExcluirMuita gente cansa de dar murro em ponta de faca e desiste de tentar, mas nossa tarefa para mudar o mundo é mudar uma pessoa de cada vez e são mais de 7 bilhões de pessoas lá fora, não podemos esperar que a transformação aconteça do dia para a noite não é?
Foxx,
ResponderExcluircomo sempre arrasou. Um belo texto provocativo em uma sociedade, ainda dois dedos abaixo da dose. Embriagada em seu ódio e preconceito de cada dia.
Abraço, Paulo Cesar Cuiabá MT
que bom que gostou, PC.
Excluirfico muito feliz que você continua comentando por aqui.
Belo texto ! Talvez a coisa leve muito mais tempo do que desejaríamos pra mudar o valor das palavras e dos rótulos. Mas a gente pode começar a mudar e contaminar mesmo as outras pessoas a partir da exposição do nosso ponto de vista da coisa. Como está acontecendo, a coisa hoje está melhor que um tempo atrás, e acho que assim é que vai, mas vc tem razão, a gente precisa falar sobre ...
ResponderExcluirAbraço !
Pois é, Marcos, eu também acredito nisso. Nós temos que começar a mudança, temos que falar sobre o assunto e mostrar onde está o problema, uma hora, depois da gente repetir bastante, alguém vai se tocar e ai surgirá a primeira mudança. Nós somos aqueles que tem a obrigação de empurrar a primeira peça do dominó para que todo o sistema comece a cair, e nós temos esta obrigação porque chegamos a este esclarecimento antes. É nosso dever!
ExcluirAtraso, atraso, atraso.. A palavra é ATRASO... Uma sociedade cheia de tabus esquisitos e gente infeliz em função desses tabus e nós, sem nenhum esforço, somos ícone da desconstrução, do questionamento, da diferença.. Esse gueto era um terreno fértil para a fraternidade e tudo que fazemos é discriminar, discriminar, discriminar.. E um monte de gente aqui vai bater palma pro seu texto, mas na prática perpetuam a mesma lógica mesquinha.. ATRASO... Jogamos a faca e o queijo fora o tempo inteiro.. ATRASO.... Por vezes somos até superestimado tamanho nosso potencial, setores menos conservadores acreditam, enxergam o que temos só enquanto potencial, pq optamos por sucumbir ao modelo que ninguém suporta mais.. Nego pensa ser moderno por que chupa piru no parque municipal quando vc encontra registro da prática na literatura há zentos mil anos.... Mas a bem da verdade é que papeis que já são mais que questionados dentro do mundo heterossexual viraram alvos pra nós.... Basta da uma rodada na internet que vc vai encontrar mil histórias com dominatrix poderosas, inversão sexual, o homem heterossexual se permitindo ter o prazer anal, Zé Loreto falando que curte fio terra, mas dou minha cara a tapa se vc achar um ensaio erótico onde o "penetrado" domina o "penetrador"... ATRASO... ATRASO!!!! Sentimos tesão pelo mesmo objeto de desejo do nosso parceiro, mas optamos pela infidelidade, a velha infidelidade, a caquética infidelidade.... Deus do céu, é muito ATRASO!!!
ResponderExcluirsó da pra aplaudir este comentário né, gente?
ExcluirUAU! que belo texto! suas analises são sempre incriveis e irrecrimináveis!
ResponderExcluirque bom que você gosta, HHP, pretendo manter o blog com este tipo de texto agora, fico feliz que você aprove a ideia.
ExcluirMuito bom o texto.
ResponderExcluirÉ curioso como eu próprio evoluí muito neste conceito de activo e passivo, e hoje vejo o assunto de uma maneira muito mais aberta.
Um passivo não tem que ser submisso, e muito menos efeminado, assim como um activo não deve ser conhecido só como um dominador e um machão. São apenas e tão só formas de gostar de fazer sexo.
Depois do Gato, não encontraria, nem me esforçando, algo a dizer.
ResponderExcluirNão sei como é para os outros, mas eu precisei de coragem para ser penetrado. E me senti, como me sinto, um rei poderoso, quando, sentado numa vara, declaro: eu consegui.
Dar a bunda é coisa pra corajosos. Sentir prazer de forma não convencional, ou seja, metendo em buceta, é corajoso. Transgredir as normas e convenções é corajoso.
Submeter-se a elas, não é coragem.
Submisso não é aquele que dá a bunda, mas aquele que se submete ao que lhe impõe a sociedade.
Eis aí o preconceito limitando o mundo, como sempre foi...
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