Era tarde da noite já, eu voltava da igreja, havia pego o primeiro ônibus que me deixava mais ou menos perto de casa, isto é, uns 10 minutos de caminhada entre o ponto e a porta de minha residência por impaciência de esperar mais e, por isso, passei diante de um bar, como já havia feito milhares de outras vezes antes, mas desta vez, eu notei que um dos garçons reparou em mim. Ele era magro e alto, tinha uma bela bunda que se destacava dentro da bermuda jeans que eles usavam. Sim, ali naquele bar de esquina que ocupava parte da avenida com suas mesas, os garçons serviam os clientes de bermudas e chinelos. Ele tinha uns olhos verdes cor-de-mar, mas do mar de Natal, um verde pálido porque todas as cores aqui são meio pálidas, afinal o branco da luz do sol suprime tudo.
Eu, como não fujo de olhares, sustentei até ele baixar os olhos. Passei ao lado dele e ele estava de cabeça baixa, vencido no seu jogo de macho, mas percebo agora que não segui meus próprios conselhos para pegar hétero: fazer o papel da virgem constrangida que baixa os olhos e tem a face coberta pelo rubor da ingenuidade (eu, na verdade, nunca faço isso e depois reclamo que ninguém chega em mim, quando é que eu dou oportunidade para alguém? Se me interesso e a pessoa corresponde pelo menos com um sorriso, eu não fico esperando o outro agir, mas voltando...). Por curiosidade, dois paços a frente dele eu olhei para trás e ele me acompanhava e riu neste momento, comentando com o colega que estava próximo dele algo, mas somente quando viu que eu estava distante o bastante para não conseguir ouvir. Eles então riram juntos e o deboche seguiu-se de um assovio. E outro, e outro.
Caminhando, sem olhar para trás, eu fiquei pensando na lógica maluca dessas pessoas. Pelo menos comigo, homens não se sentem seguros a me insultar sozinhos, e muito menos para mim. Deve ser algo que faz parte do ritual de socialização do homem heterossexual (nunca participei dessas coisas, então, não sei se é): fazer uma piada para seus confrades sobre aqueles outros que estão, hierarquicamente, abaixo deles, no caso gays, mas também mulheres. Eu sempre penso que a piada não tem, de fato, o objetivo de ferir seu alvo, somente de reforçar os laços entre aqueles homens e o seu lugar como um igual dentro do grupo. Não que a piada deixe de ser homofóbica porque não tem o objetivo de atingir o homossexual, ela continua sendo porque seu núcleo é de que existe em homens mais homens e outros menos homens, cabendo ao primeiro o controle sobre o segundo tipo.
Por outro lado, a piada que eles resolvem fazer é flertar comigo. A visível timidez dele (ele baixou os olhos) é superada no instante em que ele consegue um amigo, coisinha típica de machos adolescentes, e aliado a um amigo ele pode assoviar para mim para todo o bar ver, para todo o bar ouvir. O comportamento é obviamente fundado em mais machismo. No conceito de que homem de verdade deve estar sempre sexualmente disposto e, aqui no Nordeste, isto inclui também "não negar fogo" caso uma bicha (moi!) se insinue. E não importa para eles se eu somente havia passado a caminho da minha casa, o mesmo imaginário que faz de todo homem heterossexual um garanhão disposto ao sexo faz de todo homem homossexual um promíscuo disponível para se tornar objeto (neste sistema todo homossexual é necessariamente passivo e quer ser dominado por um macho heterossexual). Como mulheres, nós existimos para sermos objeto de prazer do "homem de verdade", mas enquanto a elas cabe o dever de negar, em defesa de sua honra, até que o homem de verdade a seduza, aos homens gays, por definição homens sem honra, é inconcebível que recusem ao sexo independente de quem seja seu parceiro.
É uma lógica doente, sinceramente. Estes homens acreditam-se detentores de poder sobre o corpo tanto de mulheres quanto de homens gays, mas como reagir a isso? Nós, as vitimas? Ah, e antes que alguém diga que ele na verdade estava interessado, que era uma cantada: primeiro, você está sofrendo de Síndrome de Estocolmo, aquela em que os sequestrados/torturados desenvolvem sentimentos pelos criminosos que os agridem, por isso você não enxerga o machismo que te banha todos os dias; segundo, se ele tivesse somente interessado em mim, qual a necessidade do amigo participar do seu flerte? Ele apenas repetiu um ritual para reforçar os laços com os outros machos do bando que acontecerá novamente toda vez que algum viado ou qualquer mulher (que não seja ligada a ele por parentesco de primeiro grau, isto é, avós, mães e irmãs) passar na frente do bar; terceiro, bora largar esse romantismo?