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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Creta: Os Amores Perdidos

Um dos poemas mais importantes dedicados a Apolo é o Hino Homérico. Os hinos constituem de uma coletânea reunida durante a época helenística de 33 poemas, escritos em hexâmetros e dirigidos a um deus. Segundo Luiz Cabral, a maioria é proveniente do século VII a.C., mas alguns são mais recentes. Seu autores denominavam-se aedos, cantores, que dedicavam-se a atividade nômade de cantar os poemas pelas diversas cidades gregas, participando de competições musicais no contexto das festas religiosas. Como funcionava entre os aedos, havia um modelo de hino que compreendia uma fórmula inicial (a invocação ao deus e a declaração de quem é o poeta), seguido por um mito curto ou extenso e uma fórmula final (com a despedida e o kairé, adeus, ao deus). É importante também saber, e os estudiosos sobre os Hinos Homéricos demoraram para entender isto: estes poemas foram escritos para serem cantados; são canções que eram apresentados ao vivo para uma plateia formada por nobres guerreiros e suas famílias. Isto é de extrema importância para entendê-los.
Na primeira parte do Hino, o aedo descreve o nascimento de Apolo em Delos até sua apoteose em Delfos. Começa com o deus já adulto, entrando no Olimpo, como arqueiro sublime, que inspira temor a todos. Leto, sua mãe, é quem o recebe e o conduz para seu lugar entre os imortais, enquanto é recepcionado pelo rei dos deuses, Zeus. Depois o cantor descreve suas circunstâncias do nascimento divino, conta que Leto, filha do titã Ceos, foi amada por Zeus e grávida foi perseguida pela rainha dos deuses, Hera. Conta da peregrinação da deusa para parir as crianças gêmeas, Apolo e Ártemis, do abrigo na ilha Ortígia, do juramento em nome do Rio Estige de consagrar a ilha em nome de sua filha, e depois em Delos em que a deusa promete consagrar a ilha ao deus. Conta do parto de nove dias e nove noites para o nascimento de Apolo, da assistência das deusas Dione, Reia, Icneia, Têmis e Anfitrite e também da jovem Ártemis, até a chegada da deusa dos partos, Ilítia, que Hera havia proibido de sair do Olimpo para acudi-la. O poeta também canta que ele fora então banhado pelas deusas, envolto em faixas e ornado com uma coroa de ouro, e antes de mamar, tomou o néctar e comeu a ambrosia das mãos de Têmis, ganhando assim sua imortalidade. Conta o hino que ele imediatamente tornou-se adulto, libertou-se de suas faixas, e bradou reivindicando o seu arco, e declarou-se porta-voz da vontade de Zeus, refulgindo sua luz.
A segunda parte do hino, ou Sequência Pítica, Apolo está no Olimpo, tocando sua lira e presidindo o coro das Musas. Canta-se também como ele percorre a Terra, fundando seu culto, tentando estabelecer um oráculo em Telfusa, outro nas encostas do monte Parnaso, na cidade de Delfos, também a morte do monstro Tífon e da serpente Píton. Em seguida, começa a procurar seus primeiros sacerdotes, disfarçado de delfim, capturou um navio vindo de Cnossos, em Creta, e levou-os para seu templo em Delfos, onde impôs-lhes obediência, prescrevendo os rituais que deveriam ser realizados e ensinando-lhes seus oráculos. Profetizando: "Outros homens, depois desses, como líderes tereis./ E com a força deles, obedientes heis de ser" (v. 542-543). Por ter se revelado a eles como delfim, era invocado aqui sob o epiteto de Apolo Delfínio. Explica Luiz Cabral que esta referência é o testemunho de uma conquista insular da Grécia, da invasão dos cretenses no continente.
O Hino ao deus que representa o modelo do ideal grego é de uma imensa complexidade, afirma Luiz Cabral que inúmeros detalhes são enigmáticos e a data e o objetivo da composição ainda são motivos de controvérsia. O poema afirma-se como obra do homem cego de Quios, isto é, Homero ("Moças, qual é para vós o mais doce dos aedos/ que sói aqui vos visitar, e qual mais vos delicia?/ Vós todas, unânimes, respondei com distinção:/ 'É o homem cego, que habita a pétrea Quios;/ pois são seus cantos sempre os mais exímios'.",  verso 169-173), o que o historiógrafo grego Tucídides e o poeta Aristófanes confirmam, mas acredita-se que sua fixação definitiva de obra do rapsodo Cinetos de Quios, escrito entre 504-501 a.C., publicando-a em Siracusa como se o texto fosse de sua própria autoria. A canção apolínea é a mais antiga da coletânea, e sua primeira parte, chamada de Hino Délio, costuma ser considerada a primeira a ter sido composta, ainda no século VIII a.C..   
Neste poema, o poeta não se esquiva de relatar os amores que o deus pítio teve com homens que Luiz Cabral, o maior especialista brasileiro no tema, chama de "identificação com os jovens". Ele canta: 


"Entre elas, Ares e o vigilante Argifonte
dançam, enquanto o Puro Apolo a lira pulsa,
com passadas altas, gráceis, se movendo; à sua volta,
flâmeo fulgor: fulgem-lhe os pés e a túnica impecável.
Leto de tranças áureas e Zeus sagaz
alegram o nobre coração ao contemplarem
o caro filho a dançar entre os deuses imortais.
Como hei de celebrar-te, a ti, que louvam tantos hinos?
Devo cantar-te em tuas conquistas, em teus amores,
como vieste a cortejar a Azântida donzela:
junto com Ísquis, filho do teossímil Elato, hábil equite?
ou junto com Forbas, da tribo de Tríops, ou com Erecteu?
ou com Leucipo, ou com a esposa de Leucipo...
(...)"
v. 200-214.

Infelizmente falta uma parte do poema, que complementa esta lista. É possível que o texto tenha sido censurada por algum leitor cristão séculos depois, chocado com o que ele poderia entender como licenciosidade. Não sabemos, mas é comum em textos antigos encontrarmos ele cheio de lacunas, não seria também impossível que o papiro somente tenha estragado exatamente nesta parte, afinal não sobram muitas cópias para que possamos compará-las. Existem inúmeros poemas gregos que nos restam apenas duas ou três linhas por causa disso. Salvaram-se então três amantes do deus no Hino: Forbas, Erecteu e Leucipo.
Mas é necessário explicar os nomes que aparecem nesta lista: "como vieste a cortejar a Azântida donzela:/ junto com Ísquis, filho do teossímil Elato, hábil equite?", fala sobre a história de Corônis, em que ela, temerosa que o deus a abandonasse quando ele começasse a envelhecer, casou-se com Ísquis causando o ciúme mortal do deus; "ou junto com Forbas, da tribo de Tríops," fala sobre o mito do filho de Triopas e Hiscila, herói da ilha de Rodes: quando o povo da ilha de Rodes foi vitima de uma praga de serpentes (em algumas versões, de dragões), um oráculo avisou que eles procurassem a ajuda de um homem chamado Forbas; este, amado por Apolo, havia recebido o dom de combater as serpentes e limpou toda a cidade, recebendo veneração da ilha pelos ródios como herói. Após sua morte, o deus para render-lhe homenagem elevou-o aos céus na forma da constelação de Serpentário ou Ophiuchus, tornando-o imortal. 
As duas últimas citações comportam-se de forma distinta porque não chegaram a nós os mitos aos quais elas fazem referências. Este é um problema comum a história, nem tudo do passado chega até nós. Vejam: sobre "ou com Erecteu?", fala sobre um dos primeiros reis de Atenas, filho de Pandion e Zeuxipe, neto de Erictônio, o filho de Hefestos e Gaia, a própria terra. Apesar desta citação, não chegou a nós também nenhuma referência sobre algum caso amoroso entre o príncipe ateniense e o deus, existe uma relação entre Creúsa, filha de Erecteu, que é possuída por Apolo e tem um filho, Íon, porém a expressão "he ama" que aparece tanto para a donzela cortejada como com Forbas, repete que a relação deveria ser com o próprio rei ateniense não com a filha deste. Em "ou com Leucipo, ou com a esposa de Leucipo...", a expressão se repete, apesar de haverem cinco heróis com este nome, não nos restou nenhum mito que conta sobre uma relação entre Apolo, um herói e sua esposa. Infelizmente, estas duas belas histórias foram perdidas.



    2 comentários:

    1. É... Histórias homoeróticas das sociedades antigas têm que sobreviver a diversos obstáculos para chegar aos nossos dias: danos no material do registro, censuras, distorções feitas por pessoas que querem remover os sinais do homoerotismo na história... As que vencem estas barreiras mostram a sua força, né?

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      1. E quando sobrevivem a tudo isso, ainda tem ao preconceito dos pesquisadores que precisam vencer para chegar ao conhecimento do publico não é?

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    " Gosto de ouvir. Aprendi muita coisa por ouvir cuidadosamente."

    Ernest Hemmingway