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terça-feira, 9 de outubro de 2012

Israel: Os Eunucos do Deuteronômio



O Deuteronômio é quinto e último livro do Pentateuco e da Torá, que precede o primeiro dos livros históricos da Bíblia medieval cristã, e seu nome significa "segunda lei", e foi batizado assim pela Septuagina, a primeira versão da Bíblia, demonstrando que o livro é um código de leis que complementa os Dez Mandamentos instituído por Moisés, cuja principal característica é ser um tratado religioso que define as regras para viver o Pacto entre Javé e o povo de Israel. Foi composto por um conjunto de manuscritos de datas diferentes que volta de 640 a 600 a.C, durante o reinado de Josias de Judá, reino ao norte de Israel, ganhou extrema importância dentro da comunidade israelita. Ele, que conta da entrega das Tábuas a Moisés até a chegada as planícies de Moab, é escrito na forma de discursos que utilizam a história de Israel para testar a realidade e a verdade do próprio código, este método é a forma mais comum de escrita do Velho Testamento. 
Uma dessas regras corresponde à uma proibição: "O varão que tenha os testículos esmagados (daka') ou o seu membro viril cortado, não poderá ser admitido na assembléia (qahal) do Senhor" (Deuteronômio 23:1-2). Neste mesmo capítulo, o Deuteronômio também exclui da comunidade israelita, além dos eunucos, os filhos bastardos e os estrangeiros. Para, no entanto, entender o porquê disso é necessário focar no contexto patriarcal no qual ele é escrito. Este trecho do livro fala das qualificações necessárias para se ingressar na assembléia política, religiosa, militar e judicial e, por extensão, a definição do que seria necessário para se tornar um cidadão ativo politicamente nos reinos de Judá e Israel, apesar de se referirem ao período anterior das Doze Tribos. No caso dos eunucos, um homem castrado não poderia se considerar um homem completo e, portanto, seria relocado socialmente para uma posição inferior entre os gêneros, junto com as mulheres. Alguns pesquisadores propõe, contudo, que esta exclusão pretende apartar da assembléia da cidade os sacerdotes de outros deuses que não Javé. 
Esta proibição se torna um problema, todavia, quando Jerusalém caiu nas mãos do rei babilônio, Nabucodonosor II, em 598 a.C., e os homens de Israel se tornam escravos e, muitos destes, são transformados em eunucos nas cortes e haréns da Babilônia. Quando Ciro II, rei da Pérsia, em 537 a.C., invadiu a Babilônia, ele libertou o povo judeu que pode retornar a Jerusalém, e muitos retornaram a cidade eunucos. Pela lei do Deuteronômio então seriam destituídos de sua cidadania e, com isso, da participação política e religiosa na cidade, porém, no livro de Isaías - um dos livros proféticos da Bíblia, escrito entre 700  e 400 a.C. - é instituído um mecanismo de fuga desta regra. Diz o livro: "O estrangeiro que por sua própria vontade se uniu ao Senhor, não deve dizer: Javé me excluirá de seu povo. Tampouco deve dizer o eunuco (saris): Não sou mais que uma árvore seca. Porque assim disse o Senhor: Os eunucos que observem meus sábados, que escolhem o que me agrada e são fiéis ao meu pacto, concederei a eles ver gravado seu nome dentro do meu templo e de minha cidade; isso é melhor que ter filhos e filhas!" (Isaías 56:3-6). A partir de Isaías então se cria um mecanismo que reescreve as leis do Deuteronômio para se adaptar a uma nova realidade existente na vida social judia, demonstrando que o livro sagrado era constantemente adaptado para atender as solicitações sociais de cada período da história dos reinos de Judá e Israel.
Também no Deuterônomio existe um trecho que diz: "A mulher não se vestirá de homem, nem o homem se vestirá de mulher: aquele que o fizer será abominável diante do Senhor, seu Deus" (22:5). Este trecho é por muitos considerado uma proibição do crossdressing, o que particularmente considero uma interpretação extremamente superficial do trecho. Este trecho é apresentado juntamente na parte que aconselha o bom judeu a ajudar um jumento ou boi caído na estrada, que se encontrar uma ave com um ninho numa árvore ou no chão pegaria os ovos, mas libertaria a mãe; também aconselha a não semear várias espécies no mesmo campo, também não usar vestes de tecidos diferentes e a construir um parapeito no teto de sua casa. Os comentadores ligados a queer theory costumam relacionar este trecho a manutenção do papel masculino na sociedade patriarcal israelita, mas também fazem referência aos ritos de fertilidade praticados pelos povos que estavam ao redor de Israel à época do reino de Judá. Novamente para manter a sua própria identidade em comparação com os outros povos, Israel proibia dentro do seu território a realização dos ritos de outras religiões, entre eles, a hierogamia. A hierogamia se trata do casamento ritual do sacerdote com a deusa, para tanto, por exemplo, no rito de Astarté, comum entre os fenícios e filisteus, um sacerdote se travestia com as roupas da deusa e fazia sexo com outro sacerdote em nome dela realizando assim o casamento ritual e, com isso, garantia-se a fecundidade da terra pela boa vontade da deusa. A preocupação israelita ainda é construir uma imagem de si mesmo que se distancie ao máximo dos comportamentos comuns às populações que viviam ao seu redor.

15 comentários:

  1. Engraçado saber disso tudo agora que me distanciei totalmente da bíblia. Essa interpretação extremamente superficial por parte dos religiosos... Bom, acredito que não seja somente nesse trecho, mas em toda bíblia!!

    Nunca tinha ouvido falar do 'rito de Astarté' :O haha

    ps: andei sumido e perdi comentar no post sobre a mudança do look do blog, mas preciso dizer que adorei! Azul é a minha cor favorita, não preciso nem dizer! Muito bom gosto! Hehe

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    1. pois é, saber história ajuda exatamente a evitar interpretações superficiais de qualquer ação humana.

      e que bom que gostou do novo layout do blog.

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  2. O lance era cortar "o mal" pela raiz... hehe! Interessante isso... ainda mais se transportarmos para nosso tempo atual... os dogmas não mudaram muito não! Hugz!

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    1. não, Fred, pelo contrário, os dogmas mudaram muito, o problema é que hoje nós lemos o passado sobre nossos dogmas de hoje e os projetamos para este passado dando a ele um poder imemorial. o problema é esse. nossos dogmas parecem ser muito mais fortes do que são pq parecem que sempre existiram e que sempre existirão.

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  3. Oi Doutor Foxx!

    É interessante perceber um erro interpretativo por parte da septuaginta em relação ao nome do livro. Misneh hattorôrâ hazzôt , foi traduzido por: ‘ Esta segunda Lei’ , em lugar de: ‘ Uma cópia dessa Lei’. Apesar do erro, o título grego revela-se bastante apropriado, porque o Deuteronômio – Haddebarim – contém de fato, uma segunda legislação,que repete e amplia em boa mediada a primeira, se bem que em um outro contexto. O livro tem um lugar central dentro da Pentateuco de Israel, e mesmo, influencia todos os outros quatro livros e também os livros históricos que vem em seguida, formando o que se costuma clamar de Obra Histórica Deuteronomista. Sua composição é progressiva – bem como os demais livros – mas adquire um peso maior no pós-exílio na reforma político-religiosa levada a cabo por Esdras e Neemias onde a nação israelita foi “purgada’ de todos os seus elementos heterodoxos e contrários ao conceito de “povo escolhido e separado” tão caro a essa reforma e de uma maneira violenta e intransigente.
    Contudo, surge paralelamente a essa reforma, toda uma literatura bíblica de oposição. Nela se encaixa o II Isaías, Ruth, Jonas. Que, em sentido contrário, mostram uma atitude mais conciliadora e universalista de Israel. Essa corrente de pensamento não foi dominante, mas encontrou o seu lugar dentro do corpo bíblico. Pena que ainda hoje ela é negligenciada principalmente por uma leitura superficial.
    Abraço!

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    1. nossa senhora! o que vc poderia nos falar mais sobre esta reforma universalista de Israel, Renato? Eu adoraria ouvir mais sobre o assunto.

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    2. Bom... tentarei responder sua pergunta.
      Aparece em Israel, no tempo do exílio e do pós-exílio, uma corrente de pensamento que vai em direção contrária à reforma de Esdras e Neemias. Representados sobre tudo no Livro do II Isaías, Jonas e Ruth. Tentando romper com o particularismo no qual a comunidade pós-exílica era tentada a se fechar, esses livros trazem em sua mensagem um universalismo mais aberto, que extrapola os limites raciais do povo eleito. O Deus de Israel não é visto mais como um deus ‘particular’ de um povo, mas da humanidade inteira. Na narração de Jonas, por exemplo, a mensagem de conversão está endereçada a um povo inimigo de Israel – Nínive – no entanto, para desapontamento de Jonas, Deus age com misericórdia sobre o povo ( isto soaria como um escândalo em outros tempos) deixando o profeta furioso. No II Isáias a profecia vai na mesma direção, Israel é considerada a "Luz das Nações". Esse livro marca os começos da escatologia judaica, do desenvolvimento dos sapienciais e também o declínio da profecia – pelo menos uma de caráter mais particularista em Israel. É interessante fazer uma leitura comparativa sobre as duas realidades.
      Espero ter esclarecido alguma coisa!

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    3. Esclareceu, claro, mas me deixou ainda mais curioso sobre o assunto. Vou precisar pesquisar mais sobre.

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  4. Fora o horror que era o processo descrito no texto (de transformação em eunucos), eu acabei me perdendo em tantos detalhes que você escreveu. Seria pra reforçar a tese de que “a preocupação israelita ainda é construir uma imagem de si mesmo...”?

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    1. tantos detalhes? esmagamento ou cortar fora? não sabia que vc era tão sensível sobre estes assuntos. amigo, nunca leia Mitologia Primitiva de Joseph Campbell, viu?

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  5. MUITA coisa errada naqueles toys... Mas e tu? Brincava de quê? Conta pro tio Fred, conta... hahahahaha!

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  6. gostei desse post, não sabia nada sobre esse assunto e aprendi um bocadinho. com certeza interpretações superficiais podem ser uma catástrofe rsrsrs...

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    1. sim, com certeza, interpretações superficiais são o problema da humanidade.

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  7. tudo novo aqui e mais um post que me gusta muito..sabes...

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" Gosto de ouvir. Aprendi muita coisa por ouvir cuidadosamente."

Ernest Hemmingway