Google+ Estórias Do Mundo: agosto 2012

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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

"A Ordem das Árvores Não Altera O Passarinho"



Estava saindo do ensaio do coral quando o Tutz me manda uma mensagem no celular. "Você vai ao show de Tulipa Ruiz no largo do Teatro Alberto Maranhão?". Eu respondi que não sabia de show algum, e ele me explicou que se tratava do Agosto da Alegria, que comemora o mês do folclore na cidade, e seria gratuito. "Vamos comigo?", ele convidou e eu aceitei. Acabamos pegando o ônibus juntos e fomos conversando, comentando que "todas as hipsters da cidade" estariam neste show. Eu contava piadas sobre hipsters, sobre o mainstream e as bandas desconhecidas, sobre bigodes, gadgets e óculos wayfarer, até que chegamos a Ribeira e descemos do ônibus e demos de cara com um grupo de meninos vestidos exatamente como eu. Camiseta, bermuda um dedo acima do joelho, sapatilhas nos pés e bolsa carteiro. "Pois é", riu o Tutz de mim, "eu quero é ver você me chamando de indie, seu hipster!"

*

"Ah, eu não sou puta nada!", negou o Tutz, "Eu só estou curtindo minha solteirice por enquanto". Eu continuava dizendo que quem pega tanto quanto ele tem pego atualmente já estava bem próximo a puta sim, e ria, era apenas uma piada obviamente, quando passou um menino extremamente bonito do nosso lado e meus olhos o acompanharam, quando voltei a olhar para o Tutz, ele estava rindo: "Depois eu que sou a puta né?", e gargalhou. Eu contra-argumentei: "Ah, querido, mas eu não quero pegar! Eu olho por pura admiração estética, como quem admira uma obra de arte em um museu!". Ele riu: "Admiração estética? Sei!". E gargalhamos juntos.

*

Era um sábado cuja chuva deu um tempo apenas para o show de Alceu Valença no largo do teatro regado a cerveja por apenas R$ 2,00. Estávamos já no ônibus, indo em direção ao Parque das Dunas porque eu dormiria na casa nova do Miguel, que eu ainda não conhecia. Era uma visita que eu estava devendo. Íamos eu e ele, além do menino que ele estava pegando. Um dos vários pretendentes que Miguel tem. Vários! "Pois é, nós nos conhecemos há seis anos, Foxx", ele falava meio arrastado já por efeito do álcool, "e por isso me sinto no direito de falar o que penso a você". Eu concordei que ele realmente tinha aquele direito. "Pois a Taís achou que eu fui grosso com você quando falei que realmente você nunca vai ter um namorado aqui em Natal porque você não tem o biotipo que agrada o público natalense". Eu me interessei e vi que o ficante do Miguel estava um pouco constrangido, ele apenas continuou. "Você usa barba, tem pêlos, não é magro e nem sarado. Eu entendo e concordo que você deve ser do jeito que você se sente bem! Para você mesmo! Se você gosta do seu visual no espelho você 'tá certíssimo em, por exemplo, cultivar a sua barba. Mas que isso afasta as pessoas, afasta p'ra caralho!". Eu concordava com a cabeça e ele continuava: "É claro que é possível que nesse mundo de Deus haja alguém que curta o seu biotipo, porém nesta cidade em que vivemos é praticamente impossível!". Eu sorri, ele também. "Não que eu te ache feio, claro que não! Mas você não agrada a todo mundo e isso faz diferença porque reduz consideravelmente as suas possibilidades".

*

Eu saía da casa do Miguel ao meio-dia já para ir ao ensaio do coral, quando ele e o ficante resolvem ir me deixar no ponto de ônibus. Caminhamos na avenida pouco, e adiante vemos um homem por volta de 40 anos, carregando inúmeras sacolas, e resmungando alto. Ele nos olhava com óbvia reprovação, e quando passa por nós fala alto. "Antes nesse Parque das Dunas era só eu de viado, agora 'tá infestado!". Nós três nos olhamos, o tom de raiva do homem era claro. Nós então gargalhamos. "Isso tudo é inveja porque somos lindas!", comento.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Israel: Os Cães Cananeus



No Levítico, cuja intenção é a construção de uma identidade hebreia entre uma população que estava exposta o tempo todo a outras etnias como os fenícios, filisteus e cananeus, existe um trecho que diz: "Não darás nenhum de teus filhos para ser sacrificado a Moloc; e não profanarás o nome de teu Deus, Jeová. Não te deitarás com um homem, como se fosse mulher: isto é uma abominação. Não te deitarás com nenhum cão (keleb), para não te contaminares com ele. Uma mulher não se prostituirá como um cão: isso é uma abominação. Não vos contamineis com nenhuma dessas coisas, porque é assim que se contaminaram as nações que vou expulsar diante de vós" (Levítico 18:21-24). 
Este trecho que retiramos como exemplo será aqui dividido em dois: o 18:21-22 e o 18:23-24 por questões didáticas somente. O primeiro que diz: "Não darás nenhum de teus filhos para ser sacrificado a Moloc; e não profanarás o nome de teu Deus, Jeová. Não te deitarás com um homem, como se fosse mulher: isto é uma abominação" (18:21-22) tem uma relação imediata com o sacrifício feito a Moloc. Este é o deus do sol entre os cananeus, de origem fenícia, cujo qual o primeiro filho de todas as famílias era sacrificado. Durante muito tempo, os estudos bíblicos consideravam este sacrifício como um sacrifício de sangue, porém, graças as pesquisas que cruzaram as referências bíblicas com os textos gregos e romanos sobre o culto a Moloc, percebeu-se que sacrificar o filho é torná-lo um sacerdote do deus, cujo culto, envolvia a prostituição sagrada também. Os versículos vistos em conjunto diriam então que uma pessoa não deve sacrificar o próprio filho para ser prostituto sagrado de um deus pagão e que isto é uma abominação.
O segundo trecho, segundo o o pastor presbiteriano John Barclay Burns, reforça a mesma ideia. A segunda parte que separamos diz: "Não te deitarás com nenhum cão (keleb), para não te contaminares com ele. Uma mulher não se prostituirá como um cão: isso é uma abominação. Não vos contamineis com nenhuma dessas coisas, porque é assim que se contaminaram as nações que vou expulsar diante de vós" (18:23-24) chama atenção para a palavra keleb, cão em aramaico, traduzido na maior parte da Bíblias simplesmente como animal, o que faz parecer que é uma proibição a zoofilia, porém se refere exatamente a prostituição masculina comum em toda Canaã, entre povos não-hebreus.  É bom registrar também que o em Deuteronômio se diz: "Não haverá mulher cortesã nem prostituta entre as filhas de Israel; também nenhum filho de Israel se prostituirá. Seja qual for o voto que tiveres feito, não levarás à casa do Senhor, teu Deus, o ganho de uma prostituta nem o salário de um cão (keleb); porque uma e outra coisa são abominadas pelo Senhor, teu Deus" (Deuteronômio 23:17-18), o que comprovaria a teoria do pastor John Burns. O cão seria então um prostituto que teriam, basicamente, o papel passivo na relação sexual, isto é, é penetrado analmente durante o intercurso sexual. 
Bruce L. Gerig afirma que a prostituição masculina, na verdade, é um problema real e persistente em Israel. O problema é citado durante o reinado de Reboão, em Judá, século X a.C. Em Reis, diz-se: "O povo de Judá fez o mal diante do Senhor e com os seus pecados excitaram-lhe o zelo mais do que tinham feito os seus pais. Edificaram para si lugares altos, estelas e ídolos assearás sobre todas as colinas e debaixo de tudo que fosse árvore verde. Até prostitutos sagrados houve na terra. Imitaram todas as abominações dos povos que o Senhor tinha expulsado de diante dos israelistas" (1Reis 14:22-24). Nove reis depois, no século VIII a.C., no reinado de Ezequiel, o livro de Reis reclama do mesmo problema, em que o rei reforma o culto que havia absorvido as características dos cultos dos deuses ao redor, inclusive a prostituição sagrada. "Destruiu os apartamentos das prostitutas e prostitutos que se encontravam no Templo do Senhor, onde as mulheres teciam vestes para Asserá (Astarte, deusa fenícia)" (2Reis 23:7). Em resumo, a conexão é sempre feita entre a prostituição masculina (e as uniões homoeróticas) e as práticas idólatras. É uma questão de identidade, novamente, em que esta população hebraica precisa, desesperadamente, se diferenciar dos grupos étnicos ao seu redor e, para isso, constrói uma religião que se diferenciava em tudo daquelas ao seu redor, começando pelo monoteísmo, seguindo pelas proibições alimentares, sexuais e, sobretudo, de culto.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A Terceira Surpresa


Horas antes, meu chefe senta na mesa ao meu lado, e calmo, mas expressando uma preocupação fora do normal, exige:
- Preciso que você termine o relatório deste cliente hoje a tarde, sem falta, Foxx. 
- Que aconteceu?
- Você bem sabe que a assessoria de imprensa dele acredita que nosso trabalho nas mídias sociais é dinheiro jogado fora. E depois do meu último e-mail que eu falei para eles se colocarem no lugar que lhes cabe e deixar para que nós cuidemos do nosso métier
- Ok!
Eu paro tudo que estou fazendo e vou me dedicar a fazer aquele relatório que estava programado para entregar somente no fim do mês, mas eu preciso termina-lo em três horas. É hora de preparar gráficos e explica-los numa linguagem simples. Torno-me somente analista de mídias por algumas horas. Como já fui assessor de imprensa e jornalista fotográfico, esse trabalho me exige sempre cumprir funções das mais diversas as que nunca me esquivei de fazer, mas agora é necessário concentração.
- Foxx, você pode vir aqui.
É meu chefe, ele está sentado com a sua sócia na sala de reuniões e quando eu entro a porta é fechada atrás de mim. 
- Sente-se!
Pronto, pensei: "serei despedido agora". Eles devem ter imaginado que o problema entre a assessoria e a equipe seria eu, o intermediário, e como eu fora contratado para cuidar desta conta exatamente, o mais lógico era procurar uma outra pessoa para o meu trabalho. 
- Foxx... 
- Posso falar? - Pediu a palavra a sócia, e meu chefe assentiu com a cabeça, ela respirou fundo e começou: - Temos gostado muito do seu trabalho por aqui. Você demonstrou que se adaptou muito bem ao trabalho com as mídias, ao trabalho de redação, e tem resolvido problemas sempre, nunca apareceu com um problema sem uma solução junto com ela, tem boas ideias para as campanhas, nossos dois últimos sorteios foram ideia sua, estamos muito felizes por termos escolhido apostar em você para esse trabalho.
Respirei aliviado. E ela continuou.
- Você sabe dos problemas que temos passado aqui na empresa, nossa reorganização com a saída da terceira sócia, nossos problemas pessoais que você sabe bem sendo amigo do seu chefe antes de vir trabalhar aqui e, por isso, temos uma proposta para fazer a você. Precisamos de ajuda e, achamos, que você é a pessoa certa a fazer isso por aqui.
Fiquei bastante curioso com o que eles gostariam de me pedir.
- Temos uma nova proposta de trabalho para você. Queremos que você assuma a gerência das mídias da agência para que nós dois possamos nos dedicar mais aos clientes e ao pensamento estratégico da empresa e menos ao trabalho prático das postagens e internet. Topa?
- E isso, obviamente - interrompeu o chefe - inclui um aumento salarial, admito que pequeno para o volume de trabalho, porém seu contrato não será mais temporário. Estamos te efetivando na empresa agora.
E sorriu.
- Então, topa? A sócia repetiu a pergunta.
- Eu topo tentar.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O Positivo





Não acredito em pensamento positivo. Acho tudo uma bobagem criada para vender livros de auto-ajuda e convencer a Xuxa. Até porque acreditar em qualquer coisa que a Xuxa também acredite é sempre perigoso.  Mas de qualquer forma eu explico sim porque eu não acredito. Em resumo, eu não acredito que seus pensamentos influenciem a sua vida de forma alguma. Imaginem que se eu acreditasse, por exemplo, que vou ficar milionário e manter minha bunda sentada no sofá da sala, nada vai me acontecer para me tornar milionário (apesar que eu poderia receber uma herança, mas quais são as possibilidades disto acontecer? mínimas, não é?), agora eu acredito nas ações das pessoas. Acredito que se uma pessoa quer namorar, outro exemplo, e se dedica a conhecer pessoas, sair com elas, a pessoa pode pensar o quanto quiser que não vai dar certo que, um dia, é possível que dê certo, fruto da insistência e do trabalho (no meu caso, especificamente, isso não funciona porque eu não quero mais me dar ao trabalho, cansei de tentar! Eu, sinceramente, não movo mais uma palha seca que seja para conhecer um outro cara). Mas, repito, tudo o que acontece é fruto de nossas ações. Ações em direção a algo são os tijolos que controem as vitórias de cada um de nós.
Dane-se se você não tem fé, continue seu trabalho mesmo assim que algum resultado vai sair disso. Ou desista. Mas ao desistir é necessário saber lidar com o sentimento de derrota. Desistir causa um processo de luto extremamente análogo ao da morte de uma pessoa. Afinal, algo morreu, uma parte de você morreu. Vejamos meu caso, novamente. Vocês conseguem imaginar a quantidade de energia que eu depositei neste sonho de namorar um dia? Quanto eu planejei uma vida que incluía um namorado? E meu investimento afetivo? Quando eu voltei para Natal, eu finalmente desisti deste sonho e eu passei por todas as fases do luto. Fases dolorosas. Inicialmente eu neguei com veemência que isso era impossível, então eu saia com pessoas e tentava namora-las; depois me isolei, que foi o período em que eu criei o personagem do Heitor; o terceiro estágio foi o da raiva, em que eu ataquei todos, inclusive os amigos; depois veio a fase da barganha, que me fez procurar um psicologo e sentar com ele para descobrir como lidar com essa dor, tentando lidar com ela de alguma forma; por fim o momento de depressão que, não por acaso, coincidiu com a minha chegada a Natal, e agora, vejo, começo a entrar na fase final da aceitação, porque começo a me sentir bem. Eu começo a fazer um distanciamento: aquela é minha vida, sim, ela é uma merda; este sou eu, vivendo esta vida de merda, mas me sentindo bem apesar de tudo isso.
Acho que estou em um começo, ou melhor, um recomeço. Uma fase nova que vem a envolver sobretudo a percepção que é possível que eu namorasse, apesar de todas as experiências negativas que eu tenho por aqui, porém como eu estou em Natal isto se torna impossível porque este meio ambiente não é favorável. Também envolve a percepção que, não obstante, eu ter mudado consideravelmente desde que juntei minhas coisas em duas malas e embarquei em um ônibus rumo a capital mineira, eu voltei para o exato mesmo ponto que eu estava quando tinha 27 anos, recebendo seiscentos reais de salário mensalmente e vivendo sob a tutela dos meus pais, sem amigos e sem namorado; eu mudei, de fato, porque agora sou capaz de aceitar o mundo que eu me julgava deslocado, hoje eu percebo que ele é o único em que eu posso viver.
Aviso que ainda dói,  mas apenas porque eu ainda estou muito machucado de todas as tentativas anteriores. Agora é só lamber as feridas e banha-las com unguentos já que não preciso mais caminhar. Finalmente algo de positivo.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Testículos

O Chefe

Sai na hora do almoço para encontrar meus pais. Minha cama quebrou e precisava ir com meus pais para comprar uma cama nova. Aproveitei o horário do almoço então para encontra-los. No caminho, indo a loja, meu chefe liga. "Você vai demorar muito no almoço?". Falo que não, e ele me avisa que aconteceu um problema com uma das contas que eu cuido. Para eu voltar logo para cuidar disso. Eu conto que estava com meus pais, mas logo estaria de volta. Faço a compra e retorno preocupado ao trabalho, e sou recebido por uma torta de caramelo, refrigerante e salgadinho, e meu chefe (que também é um amigo de faculdade) cantando parabéns para mim junto com os outros funcionários. "Fico muito feliz de você estar trabalhando aqui comigo", ele fala, após um abraço, "Fico feliz em ver que eu estou te ajudando a se recuperar". 

O Marido

Estou me despedindo do Bê, no Skype, ele me desejava feliz aniversário, quando o marido dele chega. Deseja-me também feliz aniversário e eles desligam a câmera. Mas o Bê me manda uma última mensagem quando antes de ir: "Meu marido disse que se você viesse para Berlim teria muitos namorados". 

O Medium

Após receber um passe e ter passado por uma limpeza, o medium vira-se para mim e diz, numa voz grave: "Você está apenas na metade do caminho, viu? Estes problemas, este sofrimento, tudo isso que você está passando é um teste cármico, e você ainda está na metade dele. Do teste, digo. Ainda não acabou". E, pensando bem, agora eu apenas reconheci que sempre estarei sozinho, ainda tem todo o caminho pela frente para não me sentir magoado todas as vezes que lembrar disso.

O Hetero

Sentei na mesa do bar para esperar o Andarilho e o Peter para comemorar meu aniversário. O Bob também iria me encontrar lá. Já havia pedido uma cerveja quando reparei um par de olhos verdes que olhavam em minha direção numa mesa não muito distante. Dava inclusive para ouvir a conversa deles. Falavam sobre como fulana era gostosa, e aqueles olhos verdes eram um dos mais animados em dizer que ela era gostosa. Eu olhei para trás, pensando que ele podia estar olhando para outra pessoa, talvez uma gostosa, mas só havia a parede branca do bar atrás de mim. Ele estava olhando para mim, e eu, estranhando, sorri. E da outra mesa ele sorriu para mim. Foi neste instante que o Bob chegou e ai quando eu procurei novamente os olhos verdes, nem ele, nem os amigos, estavam ainda na mesa.


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Israel: O Incesto de Noé e Cam



Em Gênese, o primeiro livro da Bíblia, cuja autoria é atribuída ainda a Moisés, após o episódio do Dilúvio em que Noé salva os animais e sua família da inundação enviada por Deus para extinguir os pecadores de sua criação, existe uma passagem que aparece assim:
"Os filhos de Noé que saíram da arca eram Sem, Cam e Jafé. Cam era o pai de Canaã. Estes eram os três filhos de Noé. É por eles que foi povoada toda terra.
Noé, que era agricultor, planou uma vinha. Tendo bebido vinho, embriagou-se, e apareceu nu no meio de sua tenda. Cam, pai de Canaã, vendo a nudez de seu pai, saiu e foi contá-lo aos seus irmãos. Mas, Sem e Jafé, tomando uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e foram cobrir a nudez de seu pai, andando de costas; e não viram a nudez de seu pai, pois tinham os seus rostos voltados. Quando Noé despertou de sua embriaguez, soube que lhe tinha feito o seu filho mais novo. 'Maldito seja, Canaã' - disse ele - 'que ele seja o escravo dos escravos de seus irmãos!'. E acrescentou: 'Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaã seja seu escravo! Que Deus prospere a Jafé; e este habite nas tendas de Sem, e Canaã seja seu escravo!'." (Genesis 9:18-27).
Duas questões são evocadas por este trecho. Primeiramente o uso da expressão "vendo a nudez do seu pai", a mesma expressão aparece no Levítico se referindo a um ato sexual: "Nenhum de vós se achegará àquela que lhe é próxima de sangue, para descobrir a sua nudez. Eu sou o Senhor" (Levítico 18:6), "Não tomarás a irmã de tua mulher, de modo que lhe seja um rival, descobrindo sua nudez com a de tua mulher durante a vida" (Lev 18:18), "Não te achegarás a uma mulher durante a sua menstruação para descobrir sua nudez" (Lev 18:19), "Se um homem tomar a sua irmã, filha de seu pai ou de sua mãe, e vir a nudez dela, e ela vir a sua, isso é uma coisa infame. Serão exterminados sob os olhos de seus compatriotas: descobriu a nudez de sua irmã; levará a sua iniquidade" (Lev 20:17), portanto, como os dois livros têm, acredita-se, uma composição aproximada, é lógico propor que o sentido da expressão seja o mesmo. Portanto, no mito fixado na Bíblia, após ficar bêbado com o vinho, Noé teria tido uma relação sexual com o seu filho mais novo. Angel Rodriguez afirma que muitos dos interpretes, inclusive, concordam com esta teoria, porém ele faz duas perguntas: a primeira que nenhuma das referências do Levítico levam em consideração relações homoeróticas ao utilizar a expressão descobrir/ver a nudez e que estas referências poderiam se referir muito mais a Cam ter tido relações sexuais com sua própria mãe, dado um outro versículo: "Não descobrirás a nudez do irmão de teu pai, aproximando-te de sua mulher: é tua tia" (Lev 18:14). Segundo Rogriguez, este trecho diz que a nudez é uma metáfora para a esposa/mulher do homem, porém se voltarmo-nos para o versículo 20:17 (citado acima) que diz em um momento "vir a nudez dela, e ela vir a sua", significa que as mulheres também teriam a sua própria nudez. Se Rodriguez estiver correto, então mulheres poderiam ter esposas no início da história judaica; se ele estiver errado, também se comprova que a expressão também poderia ser usada entre relações entre pessoas do mesmo sexo. 
Se acreditarmos que Rodriguez está enganado, o crime de Cam contra seu pai torna-se o incesto, e aí vemos que por causa disso o pai amaldiçoa o filho e toda sua descendência. Eles tornariam-se escravos de seus outros filhos e seus descendentes. O livro do Gêneses diz que descendiam de Jafé os povos dispersos nas ilhas, de Sem descendiam todas as tribos de Israel e Judá, enquanto de Cam descendiam os assírios, babilônicos, fenícios, filisteus, amorreus, samareus e os cananeus, isto é, basicamente todas as tribos que eram inimigas dos israelitas. Ou seja, o texto do Gênese fornece o motivo pelo qual era lícito aos israelitas fazerem guerra a seus povos vizinhos, dominá-los, tomar-lhes a terra e ainda fazê-los de escravos. Volta-se, novamente, a questão da construção da identidade e de uma nação para os israelitas. Eles estão construindo uma nação para eles, vindos do Egito, e precisam expulsar aqueles povos que já estavam ali para abrir espaço para si mesmos, e a primeira forma de fazer isso, de fazer um espaço para si e evitar que o grupo étnico seu misture com os que estão lá dentro é amaldiçoar/demonizar o outro grupo. E o incesto, prática comum no Egito de onde os hebreus fugiam, não o homoerotismo, é o crime mais grave para o mundo hebraico.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Feliz Aniversário!

- Então, me diga de onde vem toda essa tristeza?, o médico me perguntou.
- De um coração partido. Respondi com a voz clara.
- Ah, meu irmão, eu não tenho remédio para coração partido. Demorou ele a responder.
- Não?, temi que ele se ofendesse com a minha inflexão irônica.
- Não... mas... - ele demorou um instante - esta tristeza é tão antiga.
- Sim, é sim. É um ferimento muito antigo. Respondi rápido.
- Desculpe-me, meu irmão, mas não há remédio para isso. Você depositou suas esperanças em coisas vãs...
- E elas se desmancharam no ar.



São 31 anos. E ainda não há o que comemorar, porque ainda não tenho nada sólido em que me apoiar, tudo ainda pode, a qualquer momento, se desfazer no ar.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Bodas de Estanho

Fiz questão de ir na festa de encerramento do Feitiço. Na verdade quando soube que o "Pagode" ia fechar, meu coração apertou um pouco e um filmezinho passou na minha cabeça. Foi lá o primeiro lugar gay que eu conheci há dez anos atrás. E me vi com 21 anos, imaturo e cheio de preconceitos, entrando por aquela porta, dançando até suar, e paquerando e beijando o Marcelo, um mineiro que estava de férias em Natal, a primeira pessoa que beijei em público na vida.
O Feitiço me ensinou o que é ser gay. Ensinou-me um montão de coisas para dizer a verdade. Eu frequentei aquele ambiente religiosamente por anos. Os porteiros, seguranças, hostess e bartenders me conheciam pelo nome. Conheci pessoas, fiz amigos e alguns inimigos, beijei muitas bocas e aprendi que era possível almejar o amor quando conheci também vários casais de namorados. Um mundo novo se abriu para mim quando eu pisei naquele lugar. Um mundo radialmente distinto do meu. Este era repleto de aceitação, amor e amizade, completa e radicalmente oposta as opiniões que eu ouvia sobre o gueto gay. Foi a partir do Feitiço que eu entrei no "meio gay", e fui capaz de me aceitar e entender que ser gay é apenas uma característica da minha personalidade, a qual não é nada incomum. O "Pagode" me apresentou pessoas iguais a mim e, com isso, me apresentou um sentimento de comunidade e de união.
Não consigo não sorrir quando lembro que antes do Feitiço eu nem saía de casa a noite. Tinha medo. Não sabia como voltar de madrugada para casa, sozinho. Porque há dez anos atrás eu já estava sozinho. Mas eu fiz alguns amigos de balada. Um mundo que se abria para mim ali era o qual eu iria viver na década seguinte e que, não tenho dúvida, foi uma das poucas decisões acertadas que eu já tomei em minha vida. Contudo agora o Feitiço está fechando as portas, e fechando com ele, com certeza, uma fase da minha vida que vou guardar saudosamente na memória. Adeus, meus vinte e poucos anos, que venha a casa dos trinta.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Lentamente

Eu não queria contar sobre o menino que, segundo os leitores do blog, paquerou comigo na boate e não retornou as mensagens que mandei para ele, eu mandei duas; também não queria falar sobre eu não ter recebido nenhum presente da Luziara, isto é, não ter conhecido ninguém porque era o que todos esperavam, não era? Eu não quero falar sobre isso. Não quero falar sobre as coisas que me incomodam para não parecer vítima, como todos me acusam por aqui.
Prefiro contar que eu fiz um colar com os fios de um antigo fone de ouvido e uma pedra de quartzo-rosa para curar meu coração ferido, também procurei terapias alternativas para isso, reiki e cura eletrônica para curar meu chacra cardíaco. Também prefiro contar que quando o sol entra em Leão, os leoninos ganham um brilho extra e eu não saio mais de casa sem perceber três ou quatro homens que me devoram com os olhos, algumas mulheres também. Contudo, neles reparo mais. Vejo-os embaraçados, algumas vezes, com vergonha de não conseguir tirar os olhos de cima de mim, já outros me deixam é ruborizado pelo olhar insistente apesar de sua filha estar sentada no seu colo, conversando com ele.
Sabe o que eu prefiro mesmo? Recitar Fernando Pessoa: "O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, na dor lida se sentem bem, não as duas que ele teve, mas só a que eles não tem. E assim nas calhas de roda gira, a entreter a razão, esse comboio de corda que se chama coração". Prefiro não imaginar como seria se eu começasse a mentir aqui no blog. Poderia dizer agora que a Luziara tinha me apresentado um cara incrível, ou que o moço da boate tinha respondia a mensagem e começar a escrever a vida que eu gostaria de estar vivendo hoje em dia. Eu poderia, mas não quero fazer isso.
Prefiro falar do Arte da Ficção que estou lendo no caminho do trabalho para casa e de casa para o trabalho porque meu fone de ouvido resolveu quebrar, agora eu não sei se gasto mais com um fone mais caro, será que eles são mais resistentes mesmo? Prefiro falar das irmãs Brontë, Charlotte, Emily ou Anne, ou de O Apanhador no Campo de Centeio. Ou podemos falar de Surpreendentes X-Men, do fim do casamento da Tempestade ou da confirmação que o próximo filme dos X-Men se baseia em Dias de Um Futuro Esquecido. Mas não quero falar que minha orientadora tem dito que provavelmente serei reprovado com a tese que escrevi e que ninguém tem comprado Espartanos.  
Prefiro contar que eu morri de vergonha, outro dia, porque depois que cheguei em casa percebi que o celular estava tocando por causa do fone quebrado, e todos no ônibus estava ouvindo o Queen tocando alto no meu celular. Prefiro contar que estou fazendo aula de canto, e ensaiando Love of my life, do Queen; Sina e Te Devoro de Djavan, e participando de dois corais, e que em setembro participarei da mostra de primavera da escola de música que participo e vou cantar as três músicas acompanhado pelo professor de violão, e que o coro vai se apresentar somente em outubro, enquanto o outro coral vai cantar no próximo dia 23 de agosto.  
Eu prefiro contar que, pela primeira vez em seis meses, eu recebi um salário novamente e pude comprar cuecas, xampu e lenços umedecidos. Prefiro contar que estou numa vibe vegetariana e tenho almoçado saladas apenas. Eu compro tudo e preparo porque aqui no Nordeste as pessoas ainda acham que salada é alface, tomate e cebola, preciso ir nos maiores supermercados da cidade para encontrar outras coisas além disso para poder variar o cardápio. Prefiro contar que faço aniversário na próxima sexta-feira, 31 anos, mas não quero falar que tenho medo de organizar qualquer comemoração e ninguém aparecer. Hoje não quero falar dos problemas, apenas seguir o dia-a-dia, em frente. Acho que algo está se curando, lentamente.